terça-feira, 4 de junho de 2013

Manga com leite



- E o que a gente vai fazer com o corpo?
Um raio irrompeu na televisão, reduzindo a pó o pato do desenho animado, enquanto Tamara esperava a resposta de sua irmã.
- A gente enterra no quintal, bem no túmulo do Pluto. Daí, ninguém vai saber.
Luísa era a mais velha e mais esperta, portanto, foi a responsável por ligar o liquidificador e manusear a combinação mortífera de manga com leite. Com a mamadeira cheia, as duas caminharam nas pontas dos pés até o berço de Isadora, a caçula, que recentemente passara do quarto dos pais para o quarto das meninas. Não precisavam de mais uma irmã e, principalmente, não precisavam de mais ninguém para ocupar seu espaço, que já não era muito grande, para começo de conversa.
A bebê aceitou com voracidade a bebida oferecida pelas irmãs. Agora, era só uma questão de tempo. Quando o veneno finalmente fizesse efeito, elas diriam para os pais que a pequena havia fugido ou sido levada por alguém - alguém que não fosse um bandido, claro. Diriam também que estava tudo bem, que eles quatro já bastavam para uma família feliz. E ninguém pensaria em revirar o túmulo do velho vira-lata para descobrir a verdade. Penduradas no berço, as duas sorriram. Era um plano à prova de falhas.
Foi apenas à noite, quando os programas infantis já haviam dado lugar à novela, que Tamara e Luísa perceberam que a sabedoria popular nem sempre tem razão. Quando os créditos finais começaram a rolar, as duas foram para a cama, decepcionadas e ainda alheias à culpa e amargura que permeariam suas vidas a partir daquela sexta-feira de julho.

quinta-feira, 23 de maio de 2013

O irmão mais novo



A floresta de pernas cercava o lustroso berço de titânio. Raízes de cores brilhantes, repletas de amortecedores, que culminavam em caules azulados. Troncos beges e amarronzados cobertos por uma folhagem de diversas camadas. Plantas dos mais diversos tipos, dispostas em torno da clareira que abrigava o bebê. Em meio à selva, um aventureiro abria caminho para observar aquele ser completamente novo para o mundo.
Miguel olhou para o irmão por entre as barras do berço. Não era o mesmo cercado de madeira em que ele dormira, e seu primo antes dele. Era novo. Caro. Resistente. Belo. Tal qual seu ocupante. Talvez até tivessem sido feitos pela mesma companhia.
Miguel se lembrava do dia em que seu pai o levou para ver o irmãozinho no laboratório. Eles tiraram fotos e Miguel pensou que seus pais haviam feito um péssimo negócio. Já vira fotos do tempo em que era bebê e elas não mostravam um etezinho afogado em uma bolha de líquidos, preso a uma máquina por uma corda que lembrava os estranhos vermes do livro de ciências do seu primo. Mas seu pai explicou que o novo bebê era diferente. Havia sido criado a partir do melhor caldo genético e era alimentado apenas por nutrientes escolhidos a dedo. Teria um nascimento perfeitamente controlado, no dia, na hora, no minuto e no segundo certos. E sua mãe não sentiria qualquer tipo de dor.
Todos os parentes, amigos e vizinhos despencaram-se imediatamente após o parto para ver aquele pequeno milagre da ciência. Era o fim da dor, da doença, das imperfeições. O sonho da raça humana na forma de bebês rechonchudos, simétricos, cabeludos e risonhos, como os das fotografias tratadas das capas de revista.
Miguel afastou-se do irmão, que dormia, alheio ao que sua saúde e beleza simbolizavam para os meros mortais ao seu redor. Ou talvez ele soubesse, e justamente por isso dormisse com tanta leveza. Em frente ao espelho, Miguel tirou os óculos e examinou sua figura desfocada. Seu irmão não teria problemas de visão como ele. Também não teria asma como ele. Também não teria aqueles ossos proeminentes e anêmicos. E nem o nariz que ele herdara da avó, grande demais para o resto do rosto.
Seu irmão era forte. Belo. Perfeito. Medonho.

terça-feira, 7 de maio de 2013

Cor de Tempo

Ele abriu a velha caixa de fotografias que ficava guardada embaixo da cama. Como suas pernas, o papelão estava manchado pelo tempo e, como seus cabelos, deixava rastros sobre o lençol. As fotos eram como uma estrada capaz de percorrer o tempo ao invés do espaço. Retiradas uma a uma ou em pequenas pilhas, elas iam perdendo a cor, a definição, e até mesmo pedaços. Mais ou menos no meio do caminho, ele encontrou o que queria.
Os retratos estavam ainda inteiros, perfeitamente visíveis, embora tivessem adquirido a tonalidade típica dos momentos que ficam para trás. Bem em cima, um rapazote de vinte e poucos anos posava diante de um imponente edifício, coberto pela coloração amarela do passado. Um reflexo dos dentes, das unhas e das marcas de injeção da figura enrugada sobre a cama, que parecia tão ousada e composta na antiga fotografia, com seu uniforme do tiro de guerra.
Os dedos constantemente trêmulos acariciaram o rosto do rapaz, que era e não era mais – era passado e presente ao mesmo tempo. Com passinhos curtos, ele levou o retrato até uma outra figura enrugada, sentada em uma cadeira de balanço, coberta por um xale florido.
- Aqui: uma foto do seu noivo.
- É velha.
- Não é, não. É nova. É do seu noivo.
- Está amarela.
- É efeito. Desses que a garotada gosta.
A mão magra e coberta por ondinhas saiu de baixo do xale e tomou com cuidado a fotografia das mãos daquele homem desconhecido. Um sorriso se acendeu no rosto daquela mulher, que ele conhecia tão bem. E os dois fitaram com afeto as feições sorridentes de seus amados, cada um preso em sua própria época.

terça-feira, 30 de abril de 2013

Jogos Vorazes, ou: A história de um filme e sua estranha campanha publicitária


De olho nas férias de verão dos Estados Unidos, o trailer do segundo filme da série Jogos Vorazes começou a circular pela internet e pelos cinemas americanos. Em Chamas só estreia no final do ano, mas, com as crianças e adolescentes em casa, agora é a hora de botar o pessoal do marketing para trabalhar. Igualmente oportunista, Elisa resolveu aproveitar a deixa e fazer alguns posts sobre a saga. Pretendo escrever sobre os três livros em outra semana, com spoilers e comentários que não cabem aqui. Hoje, quero falar um pouco sobre o filme, que eu gostei bastante e assisti outra vez esses dias, tanto por causa do blog quanto para refrescar a memória para novembro. E, sim, o post vai ser grande. Dito isto, vamos em frente “and may the odds be ever on your favor”.

A primeira vez em que ouvi falar de Jogos Vorazes foi, se não me engano, em 2011, através de uma colega do trabalho. Ela comprou o livro por acaso e estava me contando sobre como ele era legal. No meio da história, um pensamento começou a me incomodar: "Mas, gente, isso não é Battle Royale?". Tinha acabado de ver o filme baseado no livro de Koushun Takami, e não achei nenhuma grande coisa. Mas a ideia é interessante. Em Battle Royale, uma turma de escola é escolhida a esmo para lutar até a morte em uma ilha. No final, apenas um sobrevive. Passado em um futuro distópico, o filme faz uma crítica à sociedade japonesa e ao medo da juventude. A matança a que são submetidos os adolescentes de Battle Royale serve de processo de transição para a vida adulta: amedrontados, traumatizados e incapazes de confiar em outras pessoas, os jovens de Battle Royale estão prontos para integrar a sociedade. Pelo menos, foi esta a minha interpretação. 

Já em Jogos Vorazes, a capital da nação pós-apocalíptica de Panem exige que seus 12 miseráveis distritos sacrifiquem dois de seus jovens anualmente como punição por uma revolta que levou à completa obliteração de um décimo terceiro distrito. Os 24 "tributos" são levados para uma arena, onde lutarão por suas vidas em uma batalha à qual apenas um pode sobreviver. A competição é transmitida ao vivo para os quatro cantos de Panem e os adolescentes escolhidos são tratados como celebridades, com desfiles, entrevistas e perfis para a televisão. Como em qualquer reality show, o vencedor leva para casa um prêmio: a oportunidade de ter um lar decente e de poder alimentar sua família sem se preocupar com o dia de amanhã.
Os 24 tributos da 74ª edição dos Jogos Vorazes.
 As semelhanças entre a essência de Jogos Vorazes e Battle Royale são, realmente, inegáveis. Muito embora Suzane Collins tenha dito que não se inspirou no livro de Takami, é difícil de acreditar que a autora não tenha, pelo menos, entreouvido e guardado na memória algum comentário sobre a obra japonesa. Porém, a forma como a trama se desenvolve e os temas que ela pretende abordar garantem ao livro de Collins um passe livre para longe do processo judicial. Enquanto Battle Royale aborda o medo do porvir e a passagem para a idade adulta, Jogos Vorazes faz uma crítica ao capitalismo selvagem e à sociedade dominada pela mídia.
Katniss Everdeen (Jennifer Lawrence)
 Para quem não sabe, a personagem principal do romance é Katniss Everdeen. Moradora do Distrito 12, que cuida da mineração de carvão, Katniss se oferece como tributo para salvar a pele da irmã mais nova. O outro escolhido é o aprendiz de padeiro Peeta Mellark, que serve de polo para o triângulo amoroso exigido pela editora para que a trilogia pudesse fazer frente ao fenômeno Crepúsculo. Se Peeta é o Edward da distopia de Suzane Collins, o lobisomem da vez é Gale Hawthorne, melhor amigo de Katniss, com quem a personagem se aventura em caçadas ilegais na floresta que cerca o distrito.
Gale (Liam Hemsworth) e Peeta (Josh Hutcherson)
A adaptação para o cinema correu da melhor maneira possível, em parte porque Jogos Vorazes é uma história feita para ser contada em imagem, dado o importante papel que as representações midiáticas ocupam na trama. O outro motivo é o cuidado na transposição para a tela grande para não deixar o filme longo demais, confuso demais ou verborrágico demais. Embora alguns detalhes essenciais - como o motivo pelo qual o nome de Gale entrou mais de 40 vezes no sorteio - tenham ficado perdidos na sala de montagem (ou na lixeira do roteirista, sei lá), o diretor Gary Ross optou por deixar de fora uma série de cenas desnecessárias, ou por substituí-las por algo mais simples e igualmente funcional. O filme também ganha pontos por ampliar o universo de Panem: enquanto o livro é todo narrado do ponto de vista de Katniss, a adaptação para os cinemas permite que conheçamos um pouco mais os personagens da Capital e os interesses por trás do sangrento reality show. Os dois maiores erros do filme em si são a forma como a comida, que tem um papel fundamental no futuro repleto de pessoas famintas em que a trama se situa, é relegada a segundo plano e a extrema limpeza dos personagens, que estão sempre de cabelinhos cuidadosamente penteados, seja na miséria do Distrito 12 ou na arena dos Jogos. A maquiagem hollywoodiana chega ao ponto de tirar da história a perna amputada de Peeta, enquanto tenta devolver o ar realista à trama com o uso exagerado de câmeras trêmulas.
Katniss e Rue, depois de dias na arena.
Já do lado de fora da tela, é possível encontrar duas faltas muito mais graves na pré-produção e no período de divulgação do filme. A primeira é o whitewashing pelo qual passou Katniss Everdeen: descrita no livro como tendo a pele morena, a personagem teve seu teste de elenco aberto apenas para atrizes caucasianas e acabou sendo interpretada por Jennifer Lawrence. O segundo problema se deve a um setor babaca do fandom de Jogos Vorazes que criticou a escalação da pequena Amandla Stenberg como Rue, a menina do Distrito 11 com quem Katniss forma uma aliança e que é descrita por Collins como tendo a pele e os olhos escuros. A escolha deu origem a uma série de tweets ofensivos (reunidos no tumblr Hunger Games Tweets) que iam desde gente reclamando que Amandla não correspondia à sua imagem da personagem até racistões de marca maior dizendo que a morte de Rue já não era mais tão triste por ela ser negra. O drama, aliás, está se repetindo com a escolha de Jeffrey Wright para o papel do gênio tecnológico Beetee, um antigo vencedor do Distrito 3. Porque, aparentemente, negros não podem ser inteligentes...

Apesar dos maiores problemas de Jogos Vorazes estarem do lado de fora das telas, é também o que foi feito no mundo real que garante ao filme seu maior trunfo sobre sua matéria-prima. E não foi proposital. Ao menos eu não acredito que tenha sido. Se foi, eu sinceramente não consigo dizer se os responsáveis por tudo aquilo são burros feito uma porta ou os maiores gênios do crime que a humanidade já conheceu. Bom, o negócio é o seguinte: pare cinco segundos para prestar atenção no cartaz de Jogos Vorazes e em alguns dos pôsteres promocionais que saíram para Em Chamas.

Alguma coisa estranha? Que tal as frases que anunciam a Turnê da Vitória e avisam que "o mundo estará assistindo"? E esta propaganda de uma marca de esmaltes que desenvolveu uma linha inspirada na franquia, batizada de Capitol Colours?
 
Francamente, nem precisava de mais nada, mas, só pra animar, jogue na mistura o fato de Jogos Vorazes ser quase todo filmado como se fosse um programa de televisão, com direito aos apresentadores Ceasar Flickerman e Claudius Templesmith quebrando a quarta parede para explicar algumas coisas para os espectadores e um videozinho sobre a história dos Jogos Vorazes que nós podemos assistir juntinho com a população de Panem. E eis que a crítica de Suzane Collins a uma sociedade em que uma minoria vive na riqueza enquanto a maioria morre de fome e é explorada por uma mídia manipuladora e quase onipotente torna-se mais óbvia do que nunca. É, nós somos a Capital. Nós, as classes média e alta do mundo inteiro, que concentramos 80% de todas as riquezas enquanto os 92% que compõe o outro lado da moeda agonizam com o pouco que lhes resta. Nós, que assistimos ao Big Brother, um programa que já sofreu investigações por suspeita de estupro e tortura, mas que também assistimos ao programa do Datena e suas variantes, que acompanhamos como a um show o sequestro do ônibus 174, em 2000, e o cativeiro da jovem Eloá, morta pelo ex-namorado em 2008. Nós, que exigimos a redução da maioridade penal para que os moradores das favelas e periferias sejam obrigados a oferecer seus filhos, privados dos confortos que só o dinheiro compra, como tributos para o julgamento popular e o espetáculo em que o noticiário transformará a próxima chacina ou rebelião de presidiários. Nós, que assistimos uma crítica ao nosso mundo e depois compramos esmaltes para representar distritos aos quais não pertencemos, no melhor estilo glamourização da miséria. É a máquina de contradições do capitalismo funcionando a todo vapor.
Escracha!
Vou chegar ao ponto de dizer que Suzane Collins escreveu um manifesto anti-capitalista infanto-juvenil? Não. O posicionamento de Jogos Vorazes é bem mais complicado e vai ficar para o próximo post. Porém, depois do retrocesso, tanto em termos políticos quanto narrativos, que foi o sucesso de vendas Crepúsculo, espero realmente que a trilogia de Collins ganhe cada vez mais os corações e mentes de seu público-alvo. Mesmo com sua divulgação esquizofrênica. Ou por causa dela. Ainda não sei dizer.

terça-feira, 16 de abril de 2013

Obituário



Era uma daquelas manhãs em que a cidade mais parecia os arredores de algum estábulo. A lama gerada pela chuva, os restos do esgoto que sempre terminava por transbordar e o lixo acumulado nas poças deixavam as ruas com um cheiro insuportável. Entre suspiros e exclamações, Dona Marlúcia desviava com dificuldade dos buracos repletos de água e micro-organismos espalhados pela calçada. Seus tempos eram outros, em que as crianças eram mais educadas, o mundo não era tão mau e o ar era mais limpo, assim como as travessas e alamedas que ainda não tinham se transformado em largas avenidas de concreto. Nas suas mãos enrugadas, duas sacolas suportavam o peso – a cada ano mais leve – dos jornais do dia, comprados bem cedinho para não faltar nenhum.
Já fazia mais de década que Dona Marlúcia conservava o hábito de checar os obituários e memorizar o nome de todos que estavam para ser velados e enterrados. Não se preocupava com as notícias de terremotos e assassinatos, com o adeus de presidentes, artistas e líderes religiosos - mortes grandiosas nas quais todos prestariam atenção. Queria os desconhecidos, os que não receberiam sequer uma nota não fosse pelo pagamento da família e de amigos – verdadeiros indigentes na sociedade da mídia. À noite, antes de dormir, rezava um terço dedicado às pessoas que deixavam, pela última vez, uma marca de sua existência no mundo: Otávio, Carolina, Noêmia, Jurandir... Para que suas alminhas entrassem sem problemas no céu, dizia.
Dona Marlúcia não ia mais à igreja. Na parede do corredor, conservava ainda o calendário do Sagrado Coração e uma pintura de Nossa Senhora com o Menino Jesus em seus braços. Porém, Deus e seus inúmeros profetas já não eram mais parte do seu dia a dia, apenas uma forma de lidar com os momentos difíceis da vida. Esta religiosidade ocasional era o motivo pelo qual seu marido – “que Deus o tenha” - dizia que seu hábito de rezar o terço para os mortos estava mais para uma superstição do que para um sinal de fé. Dona Marlúcia não lhe dava ouvidos. Mesmo agora, já viúva, sacudia a mão no ar para desmerecer suas palavras.
Na noite daquele dia malcheiroso, Dona Marlúcia repetiu o gesto duas vezes no caminho para a cama. Pegou o terço de cima da mesa de cabeceira e desabou no chão no exato minuto em que o primeiro relâmpago iluminou o quarto. O peito doía, a cabeça girava, o ar não entrava. Do que chamam isto hoje em dia?, pensou. Infarto? Falência múltipla dos órgãos? No tempo da bondade, das crianças educadas e das ruas com cheiro de flores, teria sido apenas um troço.
Apenas quando o trovão ribombou pelo céu é que Dona Marlúcia percebeu que provavelmente não viveria para descobrir o nome do mal que lhe acometera. E foi então que um pensamento aterrador invadiu sua cabeça: em todos os anos que passara rezando pelos desconhecidos, nunca dedicara uma ave-maria que fosse à sua própria alma. E se ninguém fizesse isto por ela? Seus filhos não eram religiosos e seu grupo de amigas já fora reduzido a menos da metade. Não conseguiria rezar por si própria. Não agora. Haveria outros que dedicavam suas preces aos nomes nos obituários? Se sim, será que sua família pagaria por uma notinha em pelo menos um daqueles jornais?
Uma luz esbranquiçada adentrou o quarto, fazendo com que Dona Marlúcia esboçasse um choro desesperado. O estrondo que se seguiu a fez parar: era apenas a chuva que anunciava sua chegada. O medo, porém, permanecia e Dona Marlúcia se pegou desejando que nada daquilo que ouvira nas aulas de catequese fosse verdade. Foi então que pensou em seu marido, que talvez ele tivesse razão quando dizia que ela já não agia por fé. Era apenas uma superstição. Uma forma de afastar sua própria mortalidade. Ou, talvez, de aproximá-la. Afinal, aqueles não eram mais os seus tempos. Dona Marlúcia pensou na vida que se esvaía de sua carne e nos sinais divinos que já tardavam em aparecer: as luzes, os anjos, a paz de Cristo... A cada esforço que fazia para respirar, seu medo lhe parecia mais e mais distante. Quando soltou seu último suspiro, Dona Marlúcia viu apenas o escuro e compreendeu que, de agora em diante, seria apenas uma ausência. Seus lábios moveram-se pela última vez: um agradecimento sussurrado para alguém que ela já sabia que não estava ouvindo.

terça-feira, 26 de março de 2013

Sentido

         Primeiro eles lhes tiravam a visão. E não parecia tão ruim. Muitas pessoas são capazes de viver sem enxergar. Depois, a audição lhes era arrancada. E, ainda assim, não parecia tão ruim. O olfato era o próximo da lista, seguido pelo paladar, e então já se tornava uma árdua tarefa fazer sentido do mundo ao redor. Por último, eles destruíam o tato. Mas não completamente. Tinham ao seu lado médicos e cientistas altamente treinados, que deixavam para trás o suficiente para que fosse possível cambalear ou pelo menos se arrastar pelo chão. Porém, o menor toque, a mais gentil carícia ou até mesmo a maior das dores já não alcançavam mais o cérebro dos prisioneiros. 
          Sentir era proibido por lei. Não o sentir das mãos e dos pés, mas aquele que se origina em nossas cabeças, muito embora alguns insistam em dizer que vem do coração ou da alma. Amor, ódio, alegria, tristeza, medo, coragem, a calma de um abraço ou um simples frio na barriga. Tudo era passível de punição. Era aceitável, é claro, que sentíssemos uma pontada desses sentimentos, de vez em quando. Afinal, não havíamos deixado de ser humanos. Entretanto, era preciso suprimir o desejo, a vontade, a dor e a solidão em nome de um bem maior. O importante era funcionar, sem qualquer interferência de algo que pudesse colocar uma trava no moto contínuo de ações pragmáticas que mantinha nos eixos o mundo que eles haviam planejado. Quem não funcionava, quem não se controlava, era castigado com a remoção de todos os canais que possibilitam a transmissão de sensações e a criação de sentimentos em suas mentes. Presos, sós, dentro da completa ausência, deveriam expiar seus pecados e contemplar a beleza pura e geradora do vazio.
          Eu era o seu vigia. Do alto de uma torre pintada de branco, eu observava os condenados que habitavam a prisão a céu aberto coberta de terra e sujeira. Homens e mulheres, jovens e velhos, completamente nus, eles vagavam de um lado para o outro em graus variados de falta de percepção. Os novatos gritavam, na esperança vã de que alguém lhes daria ouvidos, de que alguém os tiraria dali. Com o tempo, suas vozes eram silenciadas e restava-lhes apenas um urro selvagem e sem vida. Um eco do que um dia haviam sido. Os mais antigos tropeçavam uns nos outros, ou em suas próprias pernas, alheios à urina e às fezes que lhes escorriam pelo corpo. Alguns engatinhavam, ou simplesmente rastejavam, e não eram poucos os que se deixavam tombar à espera da morte por fadiga, doença ou por uma fome que já não percebiam. Um velho que precedia a minha contratação era o mais longevo de todos os prisioneiros. Passava a maior parte do dia sentado em um canto e saía apenas para comer. O almoço e a janta eram jogados por um cano ao meio-dia e às seis da tarde, mas, como muitos, ele já não tinha mais noção de tempo. Às vezes conseguia encontrar um pedaço de frango ou uma maçã estragada, mas não era raro se contentar com poças de vômito, excrementos e partes de outros detentos cujos corpos eram esquecidos em meio ao caos. Esta rotina era o que lhe permitia sobreviver. Não entendia por que ele a criara. Hoje, entendo menos ainda. Sem qualquer contato com o mundo exterior, ele pelo menos era imune ao patético teatro de violência protagonizado pelos que ainda não tinham passado por todas as etapas do processo de dessensibilização. Como bestas, atacavam os mais fragilizados, que muitas vezes sequer se davam conta da agressão. Deixavam para trás um rastro de adolescentes que não conseguiam se levantar; de mulheres que definhavam, incapazes de sentir os fetos que apodreciam em seus corpos; de crianças que nasciam mortas e eram rapidamente consumidas pelos mais velhos. Já não eram humanos, já não eram animais – eram feras mitológicas, monstros criados em laboratório. E eu era o seu vigia. E, um dia, sucumbi ao nojo e ao horror, às vistas dos meus companheiros.
Trancafiado no silêncio, ninguém nunca ouvirá minha história.

terça-feira, 19 de março de 2013

Pensando um pouco sobre Pietá: amor, agonia e capitalismo

Semana passada não teve post. Em meio a questões para colocar a vida em ordem, acabei não escrevendo nenhum conto e não terminando as séries que eu queria terminar para comentar por aqui. Os dias se passaram e meu ritmo produtivo continuou na mesma estagnação. Porém, como nem só de obrigações e tédio vive a blogueira, consegui achar uma brecha no tempo para ir ao cinema. Vi Pietá, filme de Kim Ki-duk que saiu vitorioso do último Festival de Veneza. Não conheço muita coisa do diretor. Antes da semana passada, só tinha visto dois de seus 18 longas: Primavera, Verão, Outono, Inverno e... Primavera e Casa Vazia, ambos bem diferentes de seu novo trabalho. O resultado? Bom, depois de mais de 40 minutos de dúvida, comecei finalmente a gostar do que estava vendo. Não foi fácil e esta conclusão só se tornou definitiva depois que eu deixei a sala de cinema, mas Pietá é bom. Muito bom. E, agora, depois dessa introduçãozinha autoexplicativa, vamos ao porquê.

 
Pietá começa como uma porrada no estômago. Os minutos iniciais são difíceis de digerir, tamanha a quantidade de violência contida em apenas algumas cenas. Muito embora o derramamento de sangue fique fora da tela, o que vemos é suficiente para que nossa imaginação preencha as lacunas. Somado às tripas dos animas cozinhados para o almoço espalhadas pelo banheiro do personagem principal e ao jogo de dardos complementado com o desenho de uma mulher, o horror das primeiras sequências formam a imagem do protagonista Kang-do: um monstro. Empregado por uma companhia de agiotagem, Kang-do atua como cobrador em uma região urbana e miserável da Coreia do Sul. Seu método consiste em aleijar os clientes incapazes de arcar com as altas taxas de juros cobradas pela empresa. Assim, Kang-do pode recolher o dinheiro do seguro e garantir o sucesso financeiro de seus empregadores.


Um dia, voltando para casa, Kang-do começa a ser seguido por uma mulher que diz ser a mãe que o abandonou quando ele era apenas um bebê. Insistente e estoicamente, a mulher força sua entrada na vida de seu suposto filho com a desculpa de recuperar o tempo perdido e pagar pelo crime de ter abandonado Kang-do e, assim, contribuído para transformá-lo no monstro dos primeiros minutos de filme. O ódio e a resistência de Kang-do – que chega ao ponto de tentar estuprar sua mãe em potencial – aos poucos se transforma em resignação até culminar em um amor que o leva à uma infância tardia, transitando na fronteira com o edipiano e desfuncional. E, enquanto dava uma pesquisada no Google para fazer este post, achei comentários de gente falando que o filme deveria ter ficado por aí. Que o foco de Kim Ki-duk deveria ter sido a relação de Kang-do com a mãe que volta à sua vida. Que o filme perde força quando os fios da trama começam a se desenrolar. Mas o filme não fica por aí. Ki-duk não deixa sua narrativa estagnar na “humanização” de Kang-do através do amor materno. Ki-duk não deixa seu filme morrer em uma discussão vazia e sentimentalista digna desses recadinhos de “mais amor por favor” que deram de pipocar pelos muros de uns tempos pra cá. E, se deixasse, eu certamente não teria começado o post dizendo que o filme é bom.
Nessa entrevista para o Hollywood Reporter, as intenções de Kim Ki-duk com seu Pietá ficam bem mais claras: “Pietá aborda as dissonâncias dos relacionamentos humanos em um sistema capitalista extremo, mostrando como a família é destruída e como o dinheiro cria desconfiança entre as pessoas. Acho que é uma experiência universal, não apenas na Coreia do Sul, mas na Europa e nos EUA."

E pode incluir o resto do mundo, também.
Através da dinâmica de poder entre Kang-do e suas vítimas – e, posteriormente, entre Kang-do e seus empregadores –, Kim Ki-duk constrói a imagem do desmantelo das relações humanas através da crescente importância do dinheiro e de um sistema de valores que coisifica seus participantes. No centro do retrato visceral pintado por Kim Ki-duk estão as mulheres que se veem vítimas desta sociedade. Ao mesmo tempo subjugadas por uma cultural extremamente patriarcal, as mães e esposas dos clientes de Kang-do são as que mais sofrem com o interminável esquema de dívidas e cobranças pelo qual seus filhos e maridos foram aprisionados. Muito embora não tenham braços e pernas decepados, são elas que, incapazes como crianças de terem uma voz ativa dentro da sociedade, servem de binóculo para que a plateia veja de perto a dor e a agonia das vítimas desse novo mundo. Humilhadas por seus próprios maridos, abandonadas, desesperadas e deixadas para morrer, elas veem tudo o que tem ser arrancado de suas vidas, desde os seus sentimentos até as chances de um prato de comida no dia seguinte. É através do horror vivido por essas mulheres que identificamos os significados de Pietá. E é com o horror vivido por essas mulheres que Kang-do deve buscar sua redenção. Para isto, o personagem precisa desenvolver os sentimentos atrofiados por seu abandono e sua íntima relação com o dinheiro e o poder. Ao invés de um filme sobre o amor e seu poder de transformação, Kim Ki-duk conta uma história de sofrimento crescente que culmina em uma compreensão da culpa seguida por uma busca por reparação que o título repleto de significados religiosos já antecipava. E dá-lhe mais uma porrada no estômago. Afinal, não há espaço para carinho em um mundo feito de socos.