terça-feira, 26 de março de 2013

Sentido

         Primeiro eles lhes tiravam a visão. E não parecia tão ruim. Muitas pessoas são capazes de viver sem enxergar. Depois, a audição lhes era arrancada. E, ainda assim, não parecia tão ruim. O olfato era o próximo da lista, seguido pelo paladar, e então já se tornava uma árdua tarefa fazer sentido do mundo ao redor. Por último, eles destruíam o tato. Mas não completamente. Tinham ao seu lado médicos e cientistas altamente treinados, que deixavam para trás o suficiente para que fosse possível cambalear ou pelo menos se arrastar pelo chão. Porém, o menor toque, a mais gentil carícia ou até mesmo a maior das dores já não alcançavam mais o cérebro dos prisioneiros. 
          Sentir era proibido por lei. Não o sentir das mãos e dos pés, mas aquele que se origina em nossas cabeças, muito embora alguns insistam em dizer que vem do coração ou da alma. Amor, ódio, alegria, tristeza, medo, coragem, a calma de um abraço ou um simples frio na barriga. Tudo era passível de punição. Era aceitável, é claro, que sentíssemos uma pontada desses sentimentos, de vez em quando. Afinal, não havíamos deixado de ser humanos. Entretanto, era preciso suprimir o desejo, a vontade, a dor e a solidão em nome de um bem maior. O importante era funcionar, sem qualquer interferência de algo que pudesse colocar uma trava no moto contínuo de ações pragmáticas que mantinha nos eixos o mundo que eles haviam planejado. Quem não funcionava, quem não se controlava, era castigado com a remoção de todos os canais que possibilitam a transmissão de sensações e a criação de sentimentos em suas mentes. Presos, sós, dentro da completa ausência, deveriam expiar seus pecados e contemplar a beleza pura e geradora do vazio.
          Eu era o seu vigia. Do alto de uma torre pintada de branco, eu observava os condenados que habitavam a prisão a céu aberto coberta de terra e sujeira. Homens e mulheres, jovens e velhos, completamente nus, eles vagavam de um lado para o outro em graus variados de falta de percepção. Os novatos gritavam, na esperança vã de que alguém lhes daria ouvidos, de que alguém os tiraria dali. Com o tempo, suas vozes eram silenciadas e restava-lhes apenas um urro selvagem e sem vida. Um eco do que um dia haviam sido. Os mais antigos tropeçavam uns nos outros, ou em suas próprias pernas, alheios à urina e às fezes que lhes escorriam pelo corpo. Alguns engatinhavam, ou simplesmente rastejavam, e não eram poucos os que se deixavam tombar à espera da morte por fadiga, doença ou por uma fome que já não percebiam. Um velho que precedia a minha contratação era o mais longevo de todos os prisioneiros. Passava a maior parte do dia sentado em um canto e saía apenas para comer. O almoço e a janta eram jogados por um cano ao meio-dia e às seis da tarde, mas, como muitos, ele já não tinha mais noção de tempo. Às vezes conseguia encontrar um pedaço de frango ou uma maçã estragada, mas não era raro se contentar com poças de vômito, excrementos e partes de outros detentos cujos corpos eram esquecidos em meio ao caos. Esta rotina era o que lhe permitia sobreviver. Não entendia por que ele a criara. Hoje, entendo menos ainda. Sem qualquer contato com o mundo exterior, ele pelo menos era imune ao patético teatro de violência protagonizado pelos que ainda não tinham passado por todas as etapas do processo de dessensibilização. Como bestas, atacavam os mais fragilizados, que muitas vezes sequer se davam conta da agressão. Deixavam para trás um rastro de adolescentes que não conseguiam se levantar; de mulheres que definhavam, incapazes de sentir os fetos que apodreciam em seus corpos; de crianças que nasciam mortas e eram rapidamente consumidas pelos mais velhos. Já não eram humanos, já não eram animais – eram feras mitológicas, monstros criados em laboratório. E eu era o seu vigia. E, um dia, sucumbi ao nojo e ao horror, às vistas dos meus companheiros.
Trancafiado no silêncio, ninguém nunca ouvirá minha história.

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