quarta-feira, 6 de março de 2013

Dois movimentos

Primeiro
O refrigerante gelado escorrendo pela garganta em um dia de verão. O calorzinho de uma caneca de chocolate quente quando o casaco já não basta. As unhas arranhando seu couro cabeludo enquanto as tranças começam a se formar lentamente nas mãos de suas irmãs. O som do vento nas copas das árvores quando o sono demora a vir. Todos os seus pequenos prazeres palideciam diante daquele beijo.
O frio corria em disparada de sua barriga para suas costas, fazendo a volta na curvinha do seu pescoço para retornar ao ponto de origem. O sabor ardido e gelado da bala de menta ia e voltava, até finalmente escorrer-lhe pela garganta. Os pelos se eriçavam como se o mundo tivesse entrado em um inesperado inverno.
Sobre a pele arrepiada, o calor que emanava dos corpos caía como uma coberta macia e úmida. Não como uma jaqueta encharcada pela chuva, mas como uma bolsa de água quente no colo para amenizar os tremores.
Mãos, dedos e unhas deslizavam por suas costas, sua cintura, seus seios, seus cabelos. Ela repetia os movimentos, sentindo a si própria através do corpo antes estranho que se unia ao seu. A trança única perdia sua forma e começava a se desfazer.
A respiração irregular soprava sobre os pelinhos do rosto, em silêncio e, ao mesmo tempo, com um barulho maior do que o de qualquer ventania em qualquer floresta.
O sorriso pleno de felicidade, prazer, timidez e desejo – um reflexo do seu – colocou em suspensão tudo que antes compunha a lista de suas coisas preferidas.

Último
“Eu te amo”, ela disse, e um sorriso doído e choroso brotou ao seu lado, substituindo as flores que ficaram para trás na transferência para o CTI.
Com uma carícia nos cabelos brancos e ralos, a boca enrugada desceu sobre a sua e o sorriso se desfez em um beijo trêmulo, calmo e vagaroso.
O refrigerante que ela já não podia tomar desceu fazendo cócegas em sua garganta. O antigo chocolate, que agora já não tinha o mesmo sabor, atravessou sua língua e encheu cada espaço entre os seus dentes. Suas irmãs, distantes e próximas, voltaram a trançar seu cabelo, que tornou a ser cheio como na juventude. O vento cortou o dia quente e seco e assoviou sua canção fantasmagórica nas árvores que cercavam o hospital.
Os lábios se descolaram dos seus, deixando para trás, como um presente de despedida, tudo que voltara a compor a lista de suas coisas preferidas.

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