sexta-feira, 28 de dezembro de 2012

Espelho

Quando eu estava na escola, uma menina despareceu. Eu costumava vê-la pelos corredores, rindo, conversando, lendo. Um dia, não a vi mais. Tínhamos mais ou menos 13 anos. Não éramos da mesma sala e acho que nunca chegamos a conversar. Lembro de ter precisado de um tempo para entender de quem todos estavam falando.
Lembro também do choro, inicialmente barulhento e depois cada vez mais silencioso, que enchia os corredores, o pátio, a quadra e as salas de aula. Era impossível escapar dos olhos vermelhos dos seus amigos, assim como dos rostos tristes e cansados de seus pais, que apareciam em todos os canais de televisão implorando para que sua filha fosse encontrada. Com o tempo, eles também sumiram. Foram substituídos pelos parentes de alguma outra vítima. De um sequestro ou de um assassinato, talvez. Ela nunca voltou para casa.
Um ano depois, todos na escola já tinham retomado suas vidas. Às vezes encontrávamos um dos amigos daquela menina sentado em algum canto, com um olhar perdido, mas pouco a pouco eles retomavam suas rotinas. Foi nesta época que os boatos começaram. Um garoto disse tê-la visto no espelho, enquanto se arrumava para sair de casa. Alguns acharam graça da história, outros ficaram verdadeiramente com medo, muitos disseram que era uma brincadeira de mau gosto. Eu não me lembro como reagi. Talvez tenha rido. Sentado contra a parede, ele sequer sorria. Falava olhando para o chão e demorou para parar de tremer. Era tudo parte de um teatro, pensamos.
Como fazem as lendas urbanas, a história começou a se espalhar. Não havia um ritual, nem consequências graves: ela simplesmente aparecia no espelho, com os olhos fixos em você. O pânico se instalava aos poucos, seguido do tremor e das lágrimas. Era o que contavam os que chegavam na escola ainda em choque. Outros faziam-se de valentes e diziam que a tinham espantado com alguma palavra ou gesto. Uma destas pessoas saiu um dia do banheiro com as pernas bambas, suando frio. Precisou ser levada para o ambulatório. Na maca, disse que tinha mentido, que tinha mentido, que não queria morrer, que não queria morrer, que não queria morrer...
Três anos depois, deixamos para sempre as paredes azulejadas e as grades do colégio. A história da menina desaparecida ficou para trás. Os mais novos fizeram com que ela permanecesse, embora a contassem com mais desdém, sem o horror que transparecia nos olhos de meus colegas. Tempos depois, soube por minhas sobrinhas, que agora ocupam aquelas mesmas carteiras, da lenda da menina que aparecia no espelho e sumia sem uma palavra. Não havia nenhuma menção ao desaparecimento real. Aos poucos, comecei também a acreditar que nada daquilo havia acontecido.
Até o dia em que me encontrei com um antigo colega de classe no supermercado. Ambos escolhíamos tomates, completamente alheios ao passado, quando percebemos a presença um do outro. Ele sorriu para mim e nós começamos uma daquelas conversas sem jeito de antigos conhecidos. Perguntei o que ele andava fazendo, se tinha casado, onde estava morando e, em um dado momento, perguntei se ele se lembrava da história da menina no espelho. Ri e falei de minhas sobrinhas e de como a lenda persistia. Demorei para notar que ele não sorria mais. Olhando para o chão, ele se despediu com uma voz morta e foi embora.
Naquela noite, pensei na estranha atitude de meu ex-colega de turma e no que poderia ter acontecido. Enquanto escovava os dentes, franzia as sobrancelhas diante do espelho, tentando encontrar uma resposta que nunca vinha. Foi então que eu a vi. No canto do espelho, como se estivesse logo atrás de mim, ela me olhava com desespero. Os braços largados ao lado do corpo, a boca entreaberta, à procura de palavras sufocadas em sua garganta. Os olhos não me deixavam. Dentro deles, pude rever os corredores frios e cheios de lágrimas e a dor que pesava sobre as aulas. Quando dei por mim, estava no canto do banheiro, no chão. Meus braços trêmulos envolviam minhas pernas, igualmente bambas. No calor do meu rosto, senti a primeira lágrima.

domingo, 11 de novembro de 2012

Ernesto

Ernesto baixou a porta do bar, como fazia todos os dias. Deixou destrancada a portinhola de ferro. Precisava resolver alguns problemas antes de ir embora. O vaso do banheiro estava entupido. Ernesto havia colado um papel na parede pedindo para que o papel fosse jogado na lixeira, mas de nada adiantou. A descarga também não era muito potente. Além do mais, precisava também passar um pano para tirar a urina que se acumulava no chão conforme aumentava o número de garrafas vazias sobre as mesas. Senão, ninguém aguentaria o cheiro no dia seguinte. Nem ele, nem os clientes. Percebeu que um fio de água corria pela parede e colocou algumas folhas de jornal no chão para conter o fluxo. Mais uma despesa.
Ernesto trabalhava sozinho no bar. Às vezes pensava em contratar alguém, mas não tinha dinheiro. Também não tinha nenhum parente que pudesse ajudá-lo, nenhum filho para dar uma mão depois da aula. Fora casado, uma vez, e sua esposa costumava trabalhar no balcão enquanto ele se ocupava dos salgados e ovos coloridos, na cozinha. Mas não estavam mais juntos. Agora, a única família que tinha era seu pai, doente e cansado, que mal conseguia se levantar da cama.
Ernesto abriu o caixa, puxou seu banquinho para o balcão e começou a contar. Em uma folha de papel, anotava os números que a velha calculadora lhe dizia. Precisava levar algum dinheiro consigo. Tinha que passar na casa de seu pai, no dia seguinte, para pagar a cuidadora – uma gentil vizinha que perdera seu emprego como auxiliar de enfermagem. O resto, guardaria no cofre.
Ernesto passava as mãos pelos cabelos ralos e grisalhos quando ouviu um barulho. Fazia algumas semanas que escutava sons estranhos vindos dos fundos do bar. Da primeira vez, pensou que fosse algum cliente deixado para trás, bêbado, que se escondera em alguma canto durante uma brincadeira idiota e ficado por lá. Mas não. Ernesto revirou o bar durante quase uma hora, olhando mais de uma, duas, três vezes os cantos mais escondidos. Não encontrou ninguém. “Devem ser ratos”, pensou, e nunca mais voltou a procurar.
Ernesto, porém, não ficou tranquilo com sua conclusão. Os barulhos eram muitas vezes altos demais para ratos. Ernesto tinha medo de que fossem fantasmas ou algo do tipo, mas se apressava em dizer a si mesmo que isto era bobagem. Estas coisas não existiam. Mas, então, o quê? No dia seguinte, tudo estava na mais perfeita ordem. Nem sequer um copo fora do lugar. O que poderia fazer tanto barulho sem causar um mínimo de desordem?
Ernesto decidiu que era hora de descobrir de uma vez por todas quem era o responsável por aquela algazarra. Pulou de cima do banquinho e, dentro da inutilizada cozinha, acendeu todas as luzas do pequeno botequim. Começou olhando embaixo da pia. Nada. Passou para o depósito, os banheiros, o canto onde guardava os engradados cheios de cascos vazios... Nada. Refez o caminho de volta para o balcão, gritando, chamando, perguntando quem estava lá. Nada. Apertou o interruptor ao lado da porta da cozinha e as luzes se apagaram. De costas para a escuridão, sentiu uma mão em seu ombro.
Ernesto virou-se, assustado. Onde antes havia apenas sombras, agora estava um homem que ele demorou para reconhecer. Era ele. O mesmo rosto, a mesma altura, as mesmas roupas. Ele próprio. Quase como um espelho, embora não refletisse os olhos assustados e a boca entreaberta de Ernesto. Pelo contrário: a cópia parecia calma e começava a esboçar um sorriso nos cantos dos lábios.
Ernesto começou a sentir um vento frio que lentamente o congelava. Primeiro, foram seus pés e braços. Pouco a pouco, sentiu o tronco e o pescoço endurecerem. Não conseguia mais se mover. Então o frio atingiu seu rosto e começou a abrir caminho por todos os seus orifícios. Suas narinas queimavam e seus ouvidos doíam conforme o sopro gelado se estendia para seu interior. Ernesto viu o reflexo sorrir. Então não viu mais nada.

Ernesto baixou a porta do bar, como fazia todos os dias. Deixou destrancada a portinhola de ferro. Precisava resolver alguns problemas antes de ir embora. Enquanto fazia a ronda pelo banheiro e o caixa, ouvia apenas o silêncio. Não havia mais nenhum barulho. Um cheiro, porém, se sobrepunha ao do banheiro, cada vez mais fétido conforme a água suja escorria por entre os azulejos e alimentava os fungos que cresciam no concreto. O cheiro forte invadiu as narinas de Ernesto, mas ele não tinha com o que se preocupar. Era só mais um casco vazio entre os muitos espalhados pelos cantos.

sábado, 3 de novembro de 2012

Introdução

Daí eu resolvi fazer um blog. Para deixar de ser uma ostra, que nem me disse a pessoa que acabou me motivando a começar a escrever na internet. Ela não sabe que me motivou e nem estava falando de mim, mas a carapuça acabou servindo. Eu ainda não sei se este blog vai para frente, mas eu espero que vá.
Este é aquele constrangedor post introdutório, em que a gente nunca tem muito bem o que escrever e meio que precisa explicar os motivos do blog e tals. É parte da etiqueta da internet. Ou pelo menos era quando eu tinha uns 14 anos, as redes sociais ainda estavam engatinhando e nós falávamos das nossas vidas (e das dos outros) e postávamos fotos futuramente constrangedoras em blogs e fotologs.
O objetivo aqui não é falar da vida de ninguém. O objetivo aqui, originalmente, era de postar algumas histórias escritas por mim. Passei muito tempo escrevendo coisas boas e outras bem furrecas e jogando-as no lixo, mas acabei chegando à conclusão que esta não era a melhor maneira de lidar com o problema. Principalmente depois que parei de achar meus textos vergonhosos um ano depois de escrevê-los.
De resto, como não terei contos o suficiente para encher este espaço com uma frequência razoável (e porque às vezes bate a vontade de falar de algum outro assunto), devo fazer alguns posts sobre coisas que me interessam, como as citadas no cabeçalho do blog e outras que eu me esqueci de colocar ou que ainda estão por surgir.
Volte sempre! Não posso prometer que os outros posts serão bons, mas acredito que serão menos constrangedores que esta apresentação.