domingo, 11 de novembro de 2012

Ernesto

Ernesto baixou a porta do bar, como fazia todos os dias. Deixou destrancada a portinhola de ferro. Precisava resolver alguns problemas antes de ir embora. O vaso do banheiro estava entupido. Ernesto havia colado um papel na parede pedindo para que o papel fosse jogado na lixeira, mas de nada adiantou. A descarga também não era muito potente. Além do mais, precisava também passar um pano para tirar a urina que se acumulava no chão conforme aumentava o número de garrafas vazias sobre as mesas. Senão, ninguém aguentaria o cheiro no dia seguinte. Nem ele, nem os clientes. Percebeu que um fio de água corria pela parede e colocou algumas folhas de jornal no chão para conter o fluxo. Mais uma despesa.
Ernesto trabalhava sozinho no bar. Às vezes pensava em contratar alguém, mas não tinha dinheiro. Também não tinha nenhum parente que pudesse ajudá-lo, nenhum filho para dar uma mão depois da aula. Fora casado, uma vez, e sua esposa costumava trabalhar no balcão enquanto ele se ocupava dos salgados e ovos coloridos, na cozinha. Mas não estavam mais juntos. Agora, a única família que tinha era seu pai, doente e cansado, que mal conseguia se levantar da cama.
Ernesto abriu o caixa, puxou seu banquinho para o balcão e começou a contar. Em uma folha de papel, anotava os números que a velha calculadora lhe dizia. Precisava levar algum dinheiro consigo. Tinha que passar na casa de seu pai, no dia seguinte, para pagar a cuidadora – uma gentil vizinha que perdera seu emprego como auxiliar de enfermagem. O resto, guardaria no cofre.
Ernesto passava as mãos pelos cabelos ralos e grisalhos quando ouviu um barulho. Fazia algumas semanas que escutava sons estranhos vindos dos fundos do bar. Da primeira vez, pensou que fosse algum cliente deixado para trás, bêbado, que se escondera em alguma canto durante uma brincadeira idiota e ficado por lá. Mas não. Ernesto revirou o bar durante quase uma hora, olhando mais de uma, duas, três vezes os cantos mais escondidos. Não encontrou ninguém. “Devem ser ratos”, pensou, e nunca mais voltou a procurar.
Ernesto, porém, não ficou tranquilo com sua conclusão. Os barulhos eram muitas vezes altos demais para ratos. Ernesto tinha medo de que fossem fantasmas ou algo do tipo, mas se apressava em dizer a si mesmo que isto era bobagem. Estas coisas não existiam. Mas, então, o quê? No dia seguinte, tudo estava na mais perfeita ordem. Nem sequer um copo fora do lugar. O que poderia fazer tanto barulho sem causar um mínimo de desordem?
Ernesto decidiu que era hora de descobrir de uma vez por todas quem era o responsável por aquela algazarra. Pulou de cima do banquinho e, dentro da inutilizada cozinha, acendeu todas as luzas do pequeno botequim. Começou olhando embaixo da pia. Nada. Passou para o depósito, os banheiros, o canto onde guardava os engradados cheios de cascos vazios... Nada. Refez o caminho de volta para o balcão, gritando, chamando, perguntando quem estava lá. Nada. Apertou o interruptor ao lado da porta da cozinha e as luzes se apagaram. De costas para a escuridão, sentiu uma mão em seu ombro.
Ernesto virou-se, assustado. Onde antes havia apenas sombras, agora estava um homem que ele demorou para reconhecer. Era ele. O mesmo rosto, a mesma altura, as mesmas roupas. Ele próprio. Quase como um espelho, embora não refletisse os olhos assustados e a boca entreaberta de Ernesto. Pelo contrário: a cópia parecia calma e começava a esboçar um sorriso nos cantos dos lábios.
Ernesto começou a sentir um vento frio que lentamente o congelava. Primeiro, foram seus pés e braços. Pouco a pouco, sentiu o tronco e o pescoço endurecerem. Não conseguia mais se mover. Então o frio atingiu seu rosto e começou a abrir caminho por todos os seus orifícios. Suas narinas queimavam e seus ouvidos doíam conforme o sopro gelado se estendia para seu interior. Ernesto viu o reflexo sorrir. Então não viu mais nada.

Ernesto baixou a porta do bar, como fazia todos os dias. Deixou destrancada a portinhola de ferro. Precisava resolver alguns problemas antes de ir embora. Enquanto fazia a ronda pelo banheiro e o caixa, ouvia apenas o silêncio. Não havia mais nenhum barulho. Um cheiro, porém, se sobrepunha ao do banheiro, cada vez mais fétido conforme a água suja escorria por entre os azulejos e alimentava os fungos que cresciam no concreto. O cheiro forte invadiu as narinas de Ernesto, mas ele não tinha com o que se preocupar. Era só mais um casco vazio entre os muitos espalhados pelos cantos.

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