De
olho nas férias de verão dos Estados Unidos, o trailer do segundo filme da
série Jogos Vorazes começou a circular pela internet e pelos cinemas
americanos. Em Chamas só estreia no final do ano, mas, com as crianças e
adolescentes em casa, agora é a hora de botar o pessoal do marketing para trabalhar. Igualmente
oportunista, Elisa resolveu aproveitar a deixa e fazer alguns posts sobre a
saga. Pretendo escrever sobre os três livros em outra semana, com spoilers
e comentários que não cabem aqui. Hoje, quero falar um pouco sobre o filme, que
eu gostei bastante e assisti outra vez esses dias, tanto por causa do blog
quanto para refrescar a memória para novembro. E, sim, o post vai ser grande.
Dito isto, vamos em frente “and may the odds be ever on your favor”.
A primeira
vez em que ouvi falar de Jogos Vorazes foi, se não me engano, em 2011, através
de uma colega do trabalho. Ela comprou o livro por acaso e estava me contando
sobre como ele era legal. No meio da história, um pensamento começou a me
incomodar: "Mas, gente, isso não é Battle Royale?". Tinha acabado de
ver o filme baseado no livro de Koushun Takami, e não achei nenhuma grande
coisa. Mas a ideia é interessante. Em Battle Royale, uma turma de escola é escolhida a
esmo para lutar até a morte em uma ilha. No final, apenas um sobrevive. Passado
em um futuro distópico, o filme faz uma crítica à sociedade japonesa e ao medo
da juventude. A matança a que são submetidos os adolescentes de Battle Royale
serve de processo de transição para a vida adulta: amedrontados, traumatizados
e incapazes de confiar em outras pessoas, os jovens de Battle Royale estão
prontos para integrar a sociedade. Pelo menos, foi esta a minha interpretação.
Já
em Jogos Vorazes,
a capital da nação pós-apocalíptica de Panem exige que seus 12 miseráveis
distritos sacrifiquem dois de seus jovens anualmente como punição por uma
revolta que levou à completa obliteração de um décimo terceiro distrito. Os 24
"tributos" são levados para uma arena, onde lutarão por suas vidas em
uma batalha à qual apenas um pode sobreviver. A competição é transmitida ao
vivo para os quatro cantos de Panem e os adolescentes escolhidos são tratados
como celebridades, com desfiles, entrevistas e perfis para a televisão. Como em qualquer reality show, o vencedor leva para casa um
prêmio: a oportunidade de ter um lar decente e de poder alimentar sua família
sem se preocupar com o dia de amanhã.
Os 24 tributos da 74ª edição dos Jogos Vorazes. |
As
semelhanças entre a essência de Jogos Vorazes e Battle Royale são, realmente,
inegáveis. Muito embora Suzane Collins tenha dito que não se inspirou no livro
de Takami, é difícil de acreditar que a autora não tenha, pelo menos, entreouvido e guardado na memória algum comentário sobre a obra japonesa. Porém, a forma como
a trama se desenvolve e os temas que ela pretende abordar garantem ao livro de Collins um passe livre
para longe do processo judicial. Enquanto Battle Royale
aborda o medo do porvir e a passagem para a idade adulta, Jogos Vorazes faz uma
crítica ao capitalismo selvagem e à sociedade dominada pela mídia.
Katniss Everdeen (Jennifer Lawrence) |
Para
quem não sabe, a personagem principal do romance é Katniss Everdeen. Moradora
do Distrito 12, que cuida da mineração de carvão, Katniss se oferece como
tributo para salvar a pele da irmã mais nova. O outro escolhido é o aprendiz de
padeiro Peeta Mellark, que serve de polo para o triângulo amoroso exigido pela
editora para que a trilogia pudesse fazer frente ao fenômeno Crepúsculo. Se
Peeta é o Edward da distopia de Suzane Collins, o lobisomem da vez é Gale
Hawthorne, melhor amigo de Katniss, com quem a personagem se aventura em
caçadas ilegais na floresta que cerca o distrito.
Gale (Liam Hemsworth) e Peeta (Josh Hutcherson) |
A
adaptação para o cinema correu da melhor maneira possível, em parte porque Jogos
Vorazes é uma história feita para ser contada em imagem, dado o importante papel que as representações midiáticas ocupam na trama. O outro motivo é o cuidado na transposição para a tela grande
para não deixar o filme longo demais, confuso demais ou verborrágico demais.
Embora alguns detalhes essenciais - como o motivo pelo qual o nome de Gale
entrou mais de 40 vezes no sorteio - tenham ficado perdidos na sala de montagem
(ou na lixeira do roteirista, sei lá), o diretor Gary Ross optou por deixar de
fora uma série de cenas desnecessárias, ou por substituí-las por algo mais
simples e igualmente funcional. O filme também ganha pontos por ampliar o
universo de Panem: enquanto o livro é todo narrado do ponto de vista de
Katniss, a adaptação para os cinemas permite que conheçamos um pouco mais os
personagens da Capital e os interesses por trás do sangrento reality show. Os dois
maiores erros do filme em si são a forma como a comida, que tem um papel
fundamental no futuro repleto de pessoas famintas em que a trama se situa, é
relegada a segundo plano e a extrema limpeza dos personagens, que estão sempre
de cabelinhos cuidadosamente penteados, seja na miséria do Distrito 12 ou na
arena dos Jogos. A maquiagem hollywoodiana chega ao ponto de tirar da história
a perna amputada de Peeta, enquanto tenta devolver o ar realista à trama com o
uso exagerado de câmeras trêmulas.
Katniss e Rue, depois de dias na arena. |
Já
do lado de fora da tela, é possível encontrar duas faltas muito mais graves na
pré-produção e no período de divulgação do filme. A primeira é o whitewashing
pelo qual passou Katniss Everdeen: descrita no livro como tendo a pele morena,
a personagem teve seu teste de elenco aberto apenas para atrizes caucasianas e
acabou sendo interpretada por Jennifer Lawrence. O segundo problema se deve a
um setor babaca do fandom de Jogos Vorazes que criticou a escalação da pequena
Amandla Stenberg como Rue, a menina do Distrito 11 com quem Katniss forma uma
aliança e que é descrita por Collins como tendo a pele e os olhos escuros. A
escolha deu origem a uma série de tweets ofensivos (reunidos no tumblr Hunger Games Tweets)
que iam desde gente reclamando que Amandla não correspondia à sua imagem
da personagem até racistões de marca maior dizendo que a morte de Rue já não
era mais tão triste por ela ser negra. O drama, aliás, está se repetindo com a
escolha de Jeffrey Wright para o papel do gênio tecnológico Beetee, um antigo
vencedor do Distrito 3. Porque, aparentemente, negros não podem ser
inteligentes...
Apesar
dos maiores problemas de Jogos Vorazes estarem do lado de fora das telas, é
também o que foi feito no mundo real que garante ao filme seu maior trunfo
sobre sua matéria-prima. E não foi proposital. Ao menos eu não acredito que
tenha sido. Se foi, eu sinceramente não consigo dizer se os responsáveis por
tudo aquilo são burros feito uma porta ou os maiores gênios do crime que a
humanidade já conheceu. Bom, o negócio é o seguinte: pare cinco segundos para
prestar atenção no cartaz de Jogos Vorazes e em alguns dos pôsteres
promocionais que saíram para Em Chamas.
Alguma
coisa estranha? Que tal as frases que anunciam a Turnê da Vitória e
avisam que "o mundo estará assistindo"? E esta propaganda
de uma marca de esmaltes que desenvolveu uma linha inspirada na franquia, batizada de Capitol Colours?
Francamente,
nem precisava de mais nada, mas, só pra animar, jogue na mistura o fato de
Jogos Vorazes ser quase todo filmado como se fosse um programa de televisão,
com direito aos apresentadores Ceasar Flickerman e Claudius Templesmith
quebrando a quarta parede para explicar algumas coisas para os espectadores e
um videozinho sobre a história dos Jogos Vorazes que nós podemos assistir
juntinho com a população de Panem. E eis que a crítica de Suzane Collins a uma
sociedade em que uma minoria vive na riqueza enquanto a maioria morre de fome e
é explorada por uma mídia manipuladora e quase onipotente
torna-se mais óbvia do que nunca. É, nós somos a Capital. Nós, as classes média
e alta do mundo inteiro, que concentramos 80% de todas as riquezas enquanto os
92% que compõe o outro lado da moeda agonizam com o pouco que lhes resta. Nós,
que assistimos ao Big Brother, um programa que já sofreu investigações por
suspeita de estupro e tortura, mas que também assistimos ao programa do Datena
e suas variantes, que acompanhamos como a um show o sequestro do ônibus 174, em
2000, e o cativeiro da jovem Eloá, morta pelo ex-namorado em 2008. Nós, que
exigimos a redução da maioridade penal para que os moradores das favelas e
periferias sejam obrigados a oferecer seus filhos, privados dos confortos que
só o dinheiro compra, como tributos para o julgamento popular e o espetáculo em
que o noticiário transformará a próxima chacina ou rebelião de presidiários. Nós, que
assistimos uma crítica ao nosso mundo e depois compramos esmaltes para
representar distritos aos quais não pertencemos, no melhor estilo glamourização da miséria. É a máquina de contradições do
capitalismo funcionando a todo vapor.
Escracha! |
Vou
chegar ao ponto de dizer que Suzane Collins escreveu um manifesto
anti-capitalista infanto-juvenil? Não. O posicionamento de Jogos Vorazes é bem
mais complicado e vai ficar para o próximo post. Porém, depois do retrocesso,
tanto em termos políticos quanto narrativos, que foi o sucesso de vendas
Crepúsculo, espero realmente que a trilogia de Collins ganhe cada vez mais os
corações e mentes de seu público-alvo. Mesmo com sua divulgação esquizofrênica.
Ou por causa dela. Ainda não sei dizer.
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