terça-feira, 18 de junho de 2013

Tem que ser sobre 20 centavos



            Um dia, eu saí de casa e a passagem estava custando R$2,95. Eu não soube do reajuste de antemão. Não vi nenhum aviso, nenhuma matéria de jornal, nada. Fui pega totalmente de surpresa pelo acréscimo de 20 centavos ao valor já abusivo cobrado pelas companhias de transporte público. Por sorte, estava munida de um Riocard cheinho e consegui pagar a passagem. Do contrário, talvez estivesse com o dinheiro contado e muito provavelmente não chegaria a tempo no evento que precisava cobrir.
            Alguns dias depois, protestos contra o aumento dos ônibus começaram a eclodir por diversas cidades brasileiras. Em todas elas, era fácil ver a revolta da população que enfrenta diariamente um serviço de transporte precário e superfaturado enquanto as obras da Copa de 2014 vão ficando cada vez mais caras. A situação se agrava conforme olhamos para as periferias dessas grandes cidades: em uma matéria da Folha, um trabalhador da construção civil contava que precisava pular refeições para arcar com o custo da passagem, não coberto pelos patrões. Contra todas essas injustiças que alimentam umas às outras, um movimento mais ou menos espontâneo se formou, a princípio em capitais como São Paulo, Rio de Janeiro e Porto Alegre, e posteriormente se expandindo para o resto do país e até para cidades menores: Niterói, Santos, Londrina, Juiz de Fora... Um a um, municípios de Norte a Sul do país tiveram suas ruas tomadas por manifestantes, que agora exigiam muito mais do que o passe livre ou a redução das passagens.
            Foi por causa de São Paulo. Outras pessoas podem apontar outros motivos, claro, mas, na minha opinião, o motivo pelo qual os protestos contra o reajuste ganharam tantos adeptos e tiveram suas pautas ampliadas foi a violência com a qual a polícia lidou com o protesto do dia 13 de junho na capital paulista, com tiros de balas de borracha, truculência e todo tipo de abuso. Giuliana Vallone, a repórter da Folha que se tornou símbolo ao levar um tiro no olho, vai recuperar a visão – o mesmo não pode ser dito do fotógrafo Sérgio Silva, da agência Futura Press, que não ganhou tanto espaço nos telejornais e nas redes sociais. Em um bar perto da Avenida Paulista, um casal foi espancado por PMs por ter participado do ato que acabara de acontecer. Uma jovem corajosa tornou público seu relato de agressão sexual: um policial a obrigou a tirar a camisa enquanto a chamava de vadia e passava o cassetete pelos seus seios. Tudo isso despertou uma sensação generalizada de raiva e dor e fez com que muita gente que fecha os olhos para os abusos cometidos diariamente nas favelas brasileiras finalmente visse o horror que representa a nossa Polícia Militar.
            E, por um tempo, foi muito bom. Foi lindo ver toda aquela gente na rua finalmente se envolvendo em um movimento que, em qualquer outra situação, seria apenas de algumas centenas ou de poucos milhares. Até que ontem estive entre as mais ou menos 100 mil pessoas que marcharam da Candelária até a Cinelândia, no Rio de Janeiro, e o que eu vi passou longe de ser o cenário político mais animador do mundo. Adianto que não estive com o pessoal que foi para a Alerj, mas não vejo baderna nenhuma em pichar as paredes da assembleia e encurralar policiais – é apenas um reflexo das barbaridades perpetradas pelos governos Paes e Cabral contra os índios da Aldeia Maracanã, os alunos da Escola Friendenreich, os jovens que cercaram o Maracanã no último domingo e tantos outros. Porém, não vejo a validade em incendiar carros de Deus sabe quem e em impedir a passagem do caminhão de bombeiros, presente apenas para conter o fogo e tratar dos feridos. Saí antes de toda essa confusão, porém, decepcionada com o esvaziamento político da manifestação, assim como meus companheiros de passeata. Em um estranho clima ufanista, pessoas se enrolavam na bandeira do Brasil e cantavam “eu sou brasileiro com muito orgulho, com muito amor”. Lá na frente, um estandarte dos integralistas do MV-Brasil se fazia visível. Novatos no mundo das mobilizações políticas e das noções básicas de fotografia gritavam “sem vandalismo” para quem subia em postes com máquinas fotográficas nas mãos para fazer uma daquelas fotos que todo mundo adora da multidão vista de cima. Outros gritavam “Sem partido!” e “Vai tomar no cu!” para manifestantes que carregavam bandeiras do PSOL, do PCB... Soube que um militante do PSTU foi espancado e teve sua bandeira roubada e queimada por gente que marchava ao seu lado alguns segundos antes. Mas o que mais me marcou foi a cena de completo descaso pela integridade humana que presenciei na porta do Theatro Municipal: uma menina apontava e gritava em tom de denúncia, anunciando a presença de dois jornalistas das Organizações Globo que andavam sem crachá. Vendo a hora em que alguém ia jogar um pedaço de pedra portuguesa na cabeça de um daqueles dois, dando início a um linchamento em praça pública, me meti na discussão para que eles pudessem ir embora. “Eu também sou jornalista!”, gritava a menina, com o dedo na minha cara. “Eu me demiti de três empregos porque manipulavam as minhas matérias!”. Que legal, cara! Queria muito viver nesse seu mundo mágico onde não existem contas para pagar e todos podemos escolher nossos empregos livremente de acordo com nosso alinhamento ideológico.
            É claro que ainda tinha muita gente boa e interessada naquela passeata, mas muitas das pessoas que vi eram meros reflexos dessa menina: incapazes de reconhecer seus inimigos, em busca apenas de confusão ou de um Judas grande o suficiente para receber todo o ódio da população e fácil de bater. Qual é a lógica de proclamar o fim da divisão entre esquerda e direita e rechaçar pequenos partidos enquanto deixa versões de fascismo correrem soltas por aí? Não pertenço a partido algum e fico indignada quando grupos ligados a estas instituições monopolizam o discurso de manifestações. Como muitos, tenho uma certa aversão ao envolvimento partidário. Porém, é assim que muita gente se mobiliza. E essas pessoas tem o direito de ver suas organizações representadas, assim como integrantes de outros grupos, como diretórios estudantis e sindicatos. Mas o quê? Você acha que o PSOL, o PCB e o PSTU estão lá para pegar carona no seu ato? Pois fique sabendo que, quer a gente goste, quer não, é esse pessoal que faz com que manifestações como essa saiam do tuitaço e da petição do Avaaz para ganhar as ruas. E são eles, também, que continuam lá depois que acaba a modinha do protesto e o grosso dos ativistas vai para casa. Partido não é feito só de deputado ladrão: é também formado por gente que se envolve, que participa e que busca diálogo com a população. E, em meio a toda essa confusão, lá se vai a pauta do protesto. “Não é só pelos 20 centavos”, dizem cartazes e fotos no Facebook. Mas então é pelo quê? “Pelo investimento do dinheiro da Copa na saúde e na educação”. Agora que os estádios já estão prontos? “Pelo impeachment da Dilma”. Oi? De onde veio isso? “Contra a corrupção”. Esse é o meu preferido! Tem gente que adora protestar contra a corrupção, como se fosse uma demanda política válida e não um abstrato conceito moral. É como botar uma roupa branca e abraçar a Lagoa Rodrigo de Freitas para pedir paz. O que é paz, para você? O que você está pedindo? Educação, saúde e redistribuição de renda ou mais pancadaria na favela para evitar roubo de iPhone no asfalto? Já vi pelo Facebook gente querendo incluir até a redução da maioridade penal na pauta dos protestos. Essa demanda não é minha e não vou ficar calada enquanto me empurram goela abaixo exigências que eu acho erradas. Senão eu também posso incluir o que eu quiser na pauta do movimento!
            Com brigas internas e completa falta de direção, as manifestações tão lindas que percorrem o Brasil vão se diluindo e se transformando em uma coisa disforme, que não pede nada e não apresenta ameaça nenhuma a ninguém. E aí as pessoas se apaixonam pelo mea culpa do Arnaldo Jabor e a súbita mudança de discurso da mídia enquanto meninos e meninas de 19 anos continuam sendo presos arbitrariamente. E pelo quê? É para que tudo isso não seja em vão que o movimento precisa recuperar seu foco. Os protestos precisam voltar seus olhos para a questão do transporte público e o modelo exclusor de cidade para o qual ele contribui ao invés de ficar rodando a cabeça para todos os lados. As manifestações tem que saber para onde estão indo, ter nas pontas das línguas o que estão pedindo. Elas tem que ser sobre os 20 centavos. E toda a violência que essas moedinhas carregam.

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