quarta-feira, 12 de junho de 2013

Jogos Vorazes, ou: Violência, drogas e classificação indicativa

Este post é parte de uma série de dois textos sobre a série Jogos Vorazes. Para ler o primeiro, clique aqui.

            Enquanto me dirigia ao caixa da livraria com uma cópia do primeiro volume de Jogos Vorazes nas mãos, uma menina de mais ou menos uns 15 anos apontou para o meu livro e, com um sorriso de orelha a orelha, disse que era muito bom. Foi na época da estreia do filme e ela usava uma camisa temática e um broche com a figura de um tordo, ave símbolo da revolução narrada por Suzanne Collins. Pouco tempo depois, tentei conversar com alguns amigos sobre a trama – os mesmos amigos com quem assisti ao último filme da saga Harry Potter a título de rito de passagem – e descobri que eles nunca tinham sequer ouvido falar do hit infanto-juvenil que estava sendo vendido como o novo Crepúsculo. E eu comecei a me questionar se não estaria velha demais para hits infanto-juvenis. Eu, que rio litros com Bob Esponja e A Nova Onda do Imperador. E então eu percebi que ninguém se questiona se está velho demais para Bob Esponja e A Nova Onda do Imperador. Praticamente todos se sentem no direito de conservar gostos infantis, ao passo que fazem pouco daqueles característicos da adolescência. Pode ser uma questão de rejeição, típica de uma mudança de fase para a idade adulta. Mas também pode ser porque a infância conserva uma aura mágica de esperteza e inocência aos olhos da nossa sociedade, enquanto a adolescência é vista com um certo ar de ridículo, como uma etapa da vida da qual nos deveríamos envergonhar, quando nos importávamos apenas com namoros, panelinhas e o próximo filme da série American Pie (referência que, daqui a alguns anos, ninguém mais vai entender...).
Eu tinha 11 anos em 1999. É, tempo...
            Entre as representações midiáticas que contribuem para esta visão simplória da adolescência, estão exemplos como a novelinha teen Malhação e a própria saga Crepúsculo, com a qual Jogos Vorazes foi amplamente comparada. A narrativa pouco variada e maniqueísta, a falta de complexidade dos temas e o foco quase que exclusivo em relacionamentos românticos só tacam mais lenha na fogueira de quem vê os jovens entre a infância e a idade adulta apenas como criaturinhas irritantes e inócuas. Mas Suzanne Collins não faz parte deste clubinho. Como tratado no post anterior, a autora não tem medo de colocar diante de seus leitores questões como miséria, violência, exploração da pobreza e privilégios de classe, o que levou grupos conservadores a pressionar escolas públicas pela remoção dos livros de suas bibliotecas, saindo-se muitas vezes vitoriosos. E muitos dos assuntos abordados por Collins tiveram apenas a ganhar com a adaptação para a tela grande, mas alguns detalhes importantíssimos acabaram ficando de fora – detalhes que vão muito além da perna amputada de Peeta e que poderiam custar aos filmes seguintes sua classificação PG-13 (equivalente ao nosso “12 anos”, embora o filme tenha sido vetado para menores de 14, no Brasil).

             É o caso do desenvolvimento de personagens como a própria Katniss, Haymitch Abernathy e os dois antigos vencedores do Distrito 6 convocados para o Massacre Quartenário. Nos três casos, o estresse pós-traumático causado pelos Jogos resulta em um consumo abusivo de algum tipo de droga como válvula de escape. Enquanto os dois tributos sem nome do distrito responsável pela produção de fármacos se agarram a suas doses de morfina para permanecer alheios à realidade, Katniss encontra refúgio na bebida, assim como Haymitch. O mentor dos jovens escolhidos do Distrito 12 teve o alcoolismo apagado de sua versão para celuloide, mas será difícil mantê-lo aparentemente sóbrio nas telas a partir do momento em que seu problema se torna fundamental para a trama. A complicação aumenta devido ao realismo com que Collins trata os vícios de seus personagens: ao invés de ocultar uma campanha antidrogas nas entrelinhas de seus três volumes, com ex-viciados caminhando alegremente sob o sol, a autora mostra sua Katniss pós-alcoolismo como ainda incapaz de superar a dor a que foi submetida e recuperar o contato com as pessoas e o mundo ao seu redor.
Haymitch Abernathy (Woody Harrelson)
            Collins também não poupa seus personagens dos efeitos das torturas promovidas pela Capital contra seus opositores. Enquanto, em Harry Potter, os pais de Neville Longbottom sucumbiram à loucura devido a um feitiço de efeitos vagamente descritos, Peeta Mellark e Johanna Mason, capturados pelo governo após a revolta do Massacre Quartenário, apresentam sinais bastante descritivos dos suplícios pelos quais passaram. Enquanto o jovem companheiro de Katniss na arena dos 74os Jogos Vorazes é submetido a uma lavagem cerebral digna de Laranja Mecânica, a antipática vencedora do Distrito 5 desenvolve um pavor descontrolado de água, que a impede mesmo de tomar um simples banho. É uma analogia ao bom (?) e velho (ô!) waterboarding, ou afogamento, tão comum nos relatos dos ex-prisioneiros de Guantánamo e de outras bases americanas usadas durante a chamada “Guerra ao Terror”. O governo do presidente Snow é responsável, também, pela criação de Avox, escravos com as línguas cortadas que cuidam de inúmeros serviços no luxuoso mundo da Capital. Punidos por atos de revolta, os Avox se encaixam perfeitamente na atmosfera de Império Romano que Collins aplica a seu futuro distópico, com Ceasars e Senecas e jogos em arenas. Aos crimes da Capital, podemos acrescentar ainda a violência sexual cometida contra os moradores dos distritos tanto na forma de repressão policial, como é o caso do Pacificador Cray, que troca favores sexuais por comida com jovens do Distrito 12, quanto na de uma política institucionalizada de agenciamento de jovens tributos para a classe dominante de Panem, como descobrimos através da história de Finnick Odair, vencedor do Distrito 4. Ao contrário da ameaça de estupro implicitada por J.K. Rowling nas palavras do lobisomem Fenrir Greyback para Hermione Granger e da metáfora para abstinência sexual dos vampiros de Stephenie Meyer, Collins não deixa margens para interpretações. Em parte porque confia no seu público, mais velho que o de Harry Potter, mas principalmente porque não há espaço para representações mágicas em seu mundo.
Johanna Mason (Jenna Malone)
            Porém, o que menos se assenta sob a maquiagem hollywoodiana, na minha opinião, não é a a crudeza de Collins para com o público adolescente, mas o estranho final de sua saga. Nesse mundão velho sem porteira que é a internet, já vi gente reclamando que o final não é satisfatório por não apresentar uma resolução e gente dizendo que A Esperança, último livro da série, tem uma resolução padrão e desleal com sua protagonista, com filhinhos e casamento. Concordo em parte com o primeiro argumento, embora ache que é justamente a falta de resolução que torna o final de Jogos Vorazes tão fantástico. Com o antigo gamemaker Plutarch Heavensbee como sua eminência parda, a nova democracia de Panem é frágil e tão centrada na mídia quanto a ditadura que a precedeu. A explicação de que as coisas estão bem por enquanto, mas que podem degringolar a qualquer momento, e o novo reality show previsto para começar em breve transformam a trilogia de Collins quase em uma versão para crianças de O Leopardo, filme de Lucchino Visconti sobre a unificação italiana, baseado em um romance que nunca li de Giuseppe Tomasi di Lampedusa: “Às vezes, as coisas precisam mudar para continuar as mesmas.” Quanto ao último ponto contrário à série, é ingenuidade afirmar que Jogos Vorazes tem um final feliz padrão. Katniss tem sua vida destruída tanto pelo cruel regime da Capital quanto pela revolução que ajudou a consolidar. Sua família e seus amigos estão para sempre perdidos, de um jeito ou de outro, e nada mais natural que ela encontre conforto apenas na pequena família formada por Haymitch e Peeta nos escombros do Distrito 12. E, no que diz respeito a filhos, Katniss nunca disse que não queria tê-los, apenas que se recusava a gerar mais vidas para serem ceifadas pela Capital. Logo, não é trair sua caracterização fazer com que ela se torne mãe. Até mesmo porque, “dezenove anos mais tarde”, Katniss não está em uma plataforma de trem, sorrindo e curtindo os tempos de paz. E é isso que soa mais estranho para um blockbuster de verão.

“My children, who don't know they play on a graveyard.
Peeta says it will be okay. (…) We can make them understand in a way that will make them braver. But one day I'll have to explain about my nightmares. Why they came. Why they won't ever really go away. (…)
That's when I make a list in my head of every act of goodness I've seen someone do. It's like a game. Repetitive. Even a little tedious after more than twenty years.
But there are much worse games to play.”

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