Era uma daquelas manhãs em que a cidade mais parecia os
arredores de algum estábulo. A lama gerada pela chuva, os restos do esgoto que
sempre terminava por transbordar e o lixo acumulado nas poças deixavam as ruas
com um cheiro insuportável. Entre suspiros e exclamações, Dona Marlúcia
desviava com dificuldade dos buracos repletos de água e micro-organismos
espalhados pela calçada. Seus tempos eram outros, em que as crianças eram mais
educadas, o mundo não era tão mau e o ar era mais limpo, assim como as
travessas e alamedas que ainda não tinham se transformado em largas avenidas de
concreto. Nas suas mãos enrugadas, duas sacolas suportavam o peso – a cada ano
mais leve – dos jornais do dia, comprados bem cedinho para não faltar nenhum.
Já fazia mais de década que Dona Marlúcia conservava o hábito
de checar os obituários e memorizar o nome de todos que estavam para ser
velados e enterrados. Não se preocupava com as notícias de terremotos e
assassinatos, com o adeus de presidentes, artistas e líderes religiosos -
mortes grandiosas nas quais todos prestariam atenção. Queria os desconhecidos,
os que não receberiam sequer uma nota não fosse pelo pagamento da família e de
amigos – verdadeiros indigentes na sociedade da mídia. À noite, antes de
dormir, rezava um terço dedicado às pessoas que deixavam, pela última vez, uma
marca de sua existência no mundo: Otávio, Carolina, Noêmia, Jurandir... Para
que suas alminhas entrassem sem problemas no céu, dizia.
Dona Marlúcia não ia mais à igreja. Na parede do corredor,
conservava ainda o calendário do Sagrado Coração e uma pintura de Nossa Senhora
com o Menino Jesus em seus braços. Porém, Deus e seus inúmeros profetas já não
eram mais parte do seu dia a dia, apenas uma forma de lidar com os momentos
difíceis da vida. Esta religiosidade ocasional era o motivo pelo qual seu
marido – “que Deus o tenha” - dizia que seu hábito de rezar o terço para os
mortos estava mais para uma superstição do que para um sinal de fé. Dona Marlúcia
não lhe dava ouvidos. Mesmo agora, já viúva, sacudia a mão no ar para
desmerecer suas palavras.
Na noite daquele dia malcheiroso, Dona Marlúcia repetiu o
gesto duas vezes no caminho para a cama. Pegou o terço de cima da mesa de
cabeceira e desabou no chão no exato minuto em que o primeiro relâmpago
iluminou o quarto. O peito doía, a cabeça girava, o ar não entrava. Do que
chamam isto hoje em dia?, pensou. Infarto? Falência múltipla dos órgãos? No
tempo da bondade, das crianças educadas e das ruas com cheiro de flores, teria
sido apenas um troço.
Apenas quando o trovão ribombou pelo céu é que Dona Marlúcia
percebeu que provavelmente não viveria para descobrir o nome do mal que lhe
acometera. E foi então que um pensamento aterrador invadiu sua cabeça: em todos
os anos que passara rezando pelos desconhecidos, nunca dedicara uma ave-maria
que fosse à sua própria alma. E se ninguém fizesse isto por ela? Seus filhos
não eram religiosos e seu grupo de amigas já fora reduzido a menos da metade.
Não conseguiria rezar por si própria. Não agora. Haveria outros que dedicavam
suas preces aos nomes nos obituários? Se sim, será que sua família pagaria por
uma notinha em pelo menos um daqueles jornais?
Uma luz esbranquiçada adentrou o quarto, fazendo com que Dona
Marlúcia esboçasse um choro desesperado. O estrondo que se seguiu a fez parar:
era apenas a chuva que anunciava sua chegada. O medo, porém, permanecia e Dona
Marlúcia se pegou desejando que nada daquilo que ouvira nas aulas de catequese
fosse verdade. Foi então que pensou em seu marido, que talvez ele tivesse razão
quando dizia que ela já não agia por fé. Era apenas uma superstição. Uma forma
de afastar sua própria mortalidade. Ou, talvez, de aproximá-la. Afinal, aqueles
não eram mais os seus tempos. Dona Marlúcia pensou na vida que se esvaía de sua
carne e nos sinais divinos que já tardavam em aparecer: as luzes, os anjos, a
paz de Cristo... A cada esforço que fazia para respirar, seu medo lhe parecia
mais e mais distante. Quando soltou seu último suspiro, Dona Marlúcia viu
apenas o escuro e compreendeu que, de agora em diante, seria apenas uma
ausência. Seus lábios moveram-se pela última vez: um agradecimento sussurrado
para alguém que ela já sabia que não estava ouvindo.
Obrigada por isso.
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