terça-feira, 16 de abril de 2013

Obituário



Era uma daquelas manhãs em que a cidade mais parecia os arredores de algum estábulo. A lama gerada pela chuva, os restos do esgoto que sempre terminava por transbordar e o lixo acumulado nas poças deixavam as ruas com um cheiro insuportável. Entre suspiros e exclamações, Dona Marlúcia desviava com dificuldade dos buracos repletos de água e micro-organismos espalhados pela calçada. Seus tempos eram outros, em que as crianças eram mais educadas, o mundo não era tão mau e o ar era mais limpo, assim como as travessas e alamedas que ainda não tinham se transformado em largas avenidas de concreto. Nas suas mãos enrugadas, duas sacolas suportavam o peso – a cada ano mais leve – dos jornais do dia, comprados bem cedinho para não faltar nenhum.
Já fazia mais de década que Dona Marlúcia conservava o hábito de checar os obituários e memorizar o nome de todos que estavam para ser velados e enterrados. Não se preocupava com as notícias de terremotos e assassinatos, com o adeus de presidentes, artistas e líderes religiosos - mortes grandiosas nas quais todos prestariam atenção. Queria os desconhecidos, os que não receberiam sequer uma nota não fosse pelo pagamento da família e de amigos – verdadeiros indigentes na sociedade da mídia. À noite, antes de dormir, rezava um terço dedicado às pessoas que deixavam, pela última vez, uma marca de sua existência no mundo: Otávio, Carolina, Noêmia, Jurandir... Para que suas alminhas entrassem sem problemas no céu, dizia.
Dona Marlúcia não ia mais à igreja. Na parede do corredor, conservava ainda o calendário do Sagrado Coração e uma pintura de Nossa Senhora com o Menino Jesus em seus braços. Porém, Deus e seus inúmeros profetas já não eram mais parte do seu dia a dia, apenas uma forma de lidar com os momentos difíceis da vida. Esta religiosidade ocasional era o motivo pelo qual seu marido – “que Deus o tenha” - dizia que seu hábito de rezar o terço para os mortos estava mais para uma superstição do que para um sinal de fé. Dona Marlúcia não lhe dava ouvidos. Mesmo agora, já viúva, sacudia a mão no ar para desmerecer suas palavras.
Na noite daquele dia malcheiroso, Dona Marlúcia repetiu o gesto duas vezes no caminho para a cama. Pegou o terço de cima da mesa de cabeceira e desabou no chão no exato minuto em que o primeiro relâmpago iluminou o quarto. O peito doía, a cabeça girava, o ar não entrava. Do que chamam isto hoje em dia?, pensou. Infarto? Falência múltipla dos órgãos? No tempo da bondade, das crianças educadas e das ruas com cheiro de flores, teria sido apenas um troço.
Apenas quando o trovão ribombou pelo céu é que Dona Marlúcia percebeu que provavelmente não viveria para descobrir o nome do mal que lhe acometera. E foi então que um pensamento aterrador invadiu sua cabeça: em todos os anos que passara rezando pelos desconhecidos, nunca dedicara uma ave-maria que fosse à sua própria alma. E se ninguém fizesse isto por ela? Seus filhos não eram religiosos e seu grupo de amigas já fora reduzido a menos da metade. Não conseguiria rezar por si própria. Não agora. Haveria outros que dedicavam suas preces aos nomes nos obituários? Se sim, será que sua família pagaria por uma notinha em pelo menos um daqueles jornais?
Uma luz esbranquiçada adentrou o quarto, fazendo com que Dona Marlúcia esboçasse um choro desesperado. O estrondo que se seguiu a fez parar: era apenas a chuva que anunciava sua chegada. O medo, porém, permanecia e Dona Marlúcia se pegou desejando que nada daquilo que ouvira nas aulas de catequese fosse verdade. Foi então que pensou em seu marido, que talvez ele tivesse razão quando dizia que ela já não agia por fé. Era apenas uma superstição. Uma forma de afastar sua própria mortalidade. Ou, talvez, de aproximá-la. Afinal, aqueles não eram mais os seus tempos. Dona Marlúcia pensou na vida que se esvaía de sua carne e nos sinais divinos que já tardavam em aparecer: as luzes, os anjos, a paz de Cristo... A cada esforço que fazia para respirar, seu medo lhe parecia mais e mais distante. Quando soltou seu último suspiro, Dona Marlúcia viu apenas o escuro e compreendeu que, de agora em diante, seria apenas uma ausência. Seus lábios moveram-se pela última vez: um agradecimento sussurrado para alguém que ela já sabia que não estava ouvindo.

Um comentário: