Somente quando ela deu entrada no apartamento, o corretor de imóveis
lhe contou sobre o estranho caso do antigo morador. Júlia ficou
levemente incomodada. Não era dada a superstições, mas não
conseguiu deixar de pensar que poderia ter procurado outro lugar se
fosse um pouco mais sensível e o corretor, mais honesto. Tinha
certeza de que ele só lhe dissera a verdade por ela não ter mais
como voltar atrás.
Mas ela teria percebido de qualquer forma. O apartamento tinha dois
quartos minúsculos, um dos quais era quase todo ocupado por um
gigantesco armário de madeira. Vai dar um bom depósito, pensou.
Talvez um lugar para guardar roupas e livros que, de outra forma,
tomariam grande parte dos cômodos. O único problema era o cheiro de
mofo. A cada porta que Júlia abria, o odor adocicado se tornava mais
intenso, fazendo arder seus olhos e suas narinas. Mas ia passar.
Bastava um pouco de ar e ia passar.
Foi na última divisória do guarda-roupa que Júlia encontrou as
evidências da loucura que acometera o antigo morador. Encostados no
canto, quadros, pôsteres e fotografias dividiam espaço com as teias
de aranha e o fedor insuportável que só fazia aumentar. Crianças e
senhoras que sorriam, abraçadas; o time do Botafogo no campeonato
brasileiro de 1962, amassado e rasgado nos cantos; Dirty Harry,
empunhando sua pistola; um homem e uma mulher na praia, talvez o dono
de todos aqueles retratos e alguma irmã ou namorada... Todos tinham
os olhos riscados, à caneta ou na ponta da faca.
Júlia sentiu um frio na espinha. Juntou as imagens em uma pilha e
enfiou-as de qualquer jeito dentro de uma sacola plástica, que jogou
no buraco da lixeira do condomínio. Não queria olhar para elas. Não
queria pensar no que poderia ter acontecido no dia em que todas
aquelas figuras se tornaram tão assustadoras, no que se passara na
cabeça do antigo morador para que ele não apenas se incomodasse com
suas presenças, mas com seus olhares. Encostada na parede gelada da
cozinha, Júlia respirou fundo. A secura na garganta só passou
depois do terceiro copo de água. Ela olhou ao redor, ainda com a
respiração irregular, e correu para abrir todos armários da casa.
Por causa do mofo. Por causa do mofo.
Em pouco menos de um mês, Júlia já não sentia mais cheiro algum
em seu novo apartamento. Até mesmo o eucalipto dos produtos de
limpeza já tinha se dissipado, junto com o verniz que antes
impregnara os armários de madeira. Os pequenos cômodos vazios foram
aos poucos mobiliados. Um sofá, uma cama, uma mesa, cadeiras, uma
geladeira, um fogão, uma televisão, enfeites... Na prateleira em
cima da cama, Júlia colocou os porta-retratos que exibiam os
momentos e as pessoas mais importantes de sua vida; no corredor, as
paredes foram cobertas por pôsteres tirados de uma coleção do
jornal que imitavam trabalhos de pintores famosos: Gauguin, Renoir,
Van Gogh. Sobre o sofá, as Marilyns de Andy Warhol sorriam para os
visitantes.
Foi também em pouco menos de um mês que Júlia começou a sentir
uma certa estranheza em algumas partes da casa. Primeiro, foi no
quarto. As fotografias em cima da cama passaram a incomodá-la de tal
maneira que Júlia já não conseguia dormir. Às vezes, fechava os
olhos por um breve instante apenas para acordar sobressaltada com
alguma coisa que ela não sabia explicar. Seus olhos sempre se
voltavam para os porta-retratos.
As manchas roxas ao redor dos olhos de Júlia já chamavam a atenção
de seus vizinhos e colegas de trabalho quando ela resolveu levar as
fotografias para a sala. Na prateleira, colocou alguns livros que
pretendia ler em breve. As noites tornaram-se mais tranquilas, mas o
problema fora apenas mudado de lugar. Sempre que ela chegava em casa
ou se sentava no sofá para ler ou ver televisão, Marilyn e suas
irmãs pareciam rir com um certo deboche de suas roupas, de seu
cabelo. Olhavam-na com desprezo. Com um misto de vergonha e raiva,
Júlia as fitava nervosamente, sentindo, por cima dos ombros, o riso
penetrante das fotografias.
Júlia passava cada vez mais tempo em seu quarto e começara a
entrar em casa pela porta da cozinha quando os quadros no corredor
começaram a murmurar e segui-la com os olhares. No começo, era só
uma impressão, um calafrio que desaparecia assim que ela virava para
trás. O pânico cresceu gradativamente no peito de Júlia, ao ponto
de ela não mais conseguir ir até a cozinha com a cabeça erguida e
as mãos firmes. Evitava ter que passar por ali. Quase não comia e
levava jarras de água para o quarto. Apenas quando a sede apertava,
voltava para enchê-las. Respirava fundo antes de atravessar o
corredor e corria, cada dia mais rápido, até perder o equilíbrio e
desabar. De quatro, com as mãos sobre a água e os cacos de vidro,
Júlia sentiu o peso dos olhares em suas costas. Ajeitando-se para
sentar no chão, ela os encarou. Eles a julgavam, riam,
humilhavam-na. Com as mãos sujas de sangue, Júlia cobriu os
ouvidos, mas não conseguia abafar a gargalhada que explodia na
parede. Júlia gritava, berrava. O rosto quente era aos poucos
coberto pelas lágrimas.
A poeira grossa voou de cima da estante e dançou no ar, iluminada
pelo sol que entrava pela janela. Não é nada grave, pensou o
corretor de imóveis. Ninguém liga para a poeira. Um casal estava
para chegar, para dar uma olhada no apartamento, e ele estava dando
os retoques finais. No geral, o lugar estava em bom estado. A única
coisa que o incomodava eram os quadros e as fotografias: jovens
taitianas com os seios a mostra e senhores de chapéu; Marilyn
Monroe, sorridente, em diversas cores; homens, mulheres e crianças,
pendurados uns nos outros; duas moças na praia. Uma delas era aquela
menina e a outra... Talvez uma amiga, uma irmã, ou namorada. Todos
tinham os olhos riscados. Por que as famílias nunca os levavam
embora? Com o suor escorrendo pelas costas, ele juntou as imagens e
largou-as em um canto do guarda-roupa. Era melhor não brincar com
essas coisas.
Muito bom! Daria um ótimo curta de terror, pensa nisso...
ResponderExcluirObrigada, Alice! Pensarei, sim. =)
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