terça-feira, 19 de fevereiro de 2013

O antigo morador

Somente quando ela deu entrada no apartamento, o corretor de imóveis lhe contou sobre o estranho caso do antigo morador. Júlia ficou levemente incomodada. Não era dada a superstições, mas não conseguiu deixar de pensar que poderia ter procurado outro lugar se fosse um pouco mais sensível e o corretor, mais honesto. Tinha certeza de que ele só lhe dissera a verdade por ela não ter mais como voltar atrás.
Mas ela teria percebido de qualquer forma. O apartamento tinha dois quartos minúsculos, um dos quais era quase todo ocupado por um gigantesco armário de madeira. Vai dar um bom depósito, pensou. Talvez um lugar para guardar roupas e livros que, de outra forma, tomariam grande parte dos cômodos. O único problema era o cheiro de mofo. A cada porta que Júlia abria, o odor adocicado se tornava mais intenso, fazendo arder seus olhos e suas narinas. Mas ia passar. Bastava um pouco de ar e ia passar.
Foi na última divisória do guarda-roupa que Júlia encontrou as evidências da loucura que acometera o antigo morador. Encostados no canto, quadros, pôsteres e fotografias dividiam espaço com as teias de aranha e o fedor insuportável que só fazia aumentar. Crianças e senhoras que sorriam, abraçadas; o time do Botafogo no campeonato brasileiro de 1962, amassado e rasgado nos cantos; Dirty Harry, empunhando sua pistola; um homem e uma mulher na praia, talvez o dono de todos aqueles retratos e alguma irmã ou namorada... Todos tinham os olhos riscados, à caneta ou na ponta da faca.
Júlia sentiu um frio na espinha. Juntou as imagens em uma pilha e enfiou-as de qualquer jeito dentro de uma sacola plástica, que jogou no buraco da lixeira do condomínio. Não queria olhar para elas. Não queria pensar no que poderia ter acontecido no dia em que todas aquelas figuras se tornaram tão assustadoras, no que se passara na cabeça do antigo morador para que ele não apenas se incomodasse com suas presenças, mas com seus olhares. Encostada na parede gelada da cozinha, Júlia respirou fundo. A secura na garganta só passou depois do terceiro copo de água. Ela olhou ao redor, ainda com a respiração irregular, e correu para abrir todos armários da casa. Por causa do mofo. Por causa do mofo.

Em pouco menos de um mês, Júlia já não sentia mais cheiro algum em seu novo apartamento. Até mesmo o eucalipto dos produtos de limpeza já tinha se dissipado, junto com o verniz que antes impregnara os armários de madeira. Os pequenos cômodos vazios foram aos poucos mobiliados. Um sofá, uma cama, uma mesa, cadeiras, uma geladeira, um fogão, uma televisão, enfeites... Na prateleira em cima da cama, Júlia colocou os porta-retratos que exibiam os momentos e as pessoas mais importantes de sua vida; no corredor, as paredes foram cobertas por pôsteres tirados de uma coleção do jornal que imitavam trabalhos de pintores famosos: Gauguin, Renoir, Van Gogh. Sobre o sofá, as Marilyns de Andy Warhol sorriam para os visitantes.
Foi também em pouco menos de um mês que Júlia começou a sentir uma certa estranheza em algumas partes da casa. Primeiro, foi no quarto. As fotografias em cima da cama passaram a incomodá-la de tal maneira que Júlia já não conseguia dormir. Às vezes, fechava os olhos por um breve instante apenas para acordar sobressaltada com alguma coisa que ela não sabia explicar. Seus olhos sempre se voltavam para os porta-retratos.
As manchas roxas ao redor dos olhos de Júlia já chamavam a atenção de seus vizinhos e colegas de trabalho quando ela resolveu levar as fotografias para a sala. Na prateleira, colocou alguns livros que pretendia ler em breve. As noites tornaram-se mais tranquilas, mas o problema fora apenas mudado de lugar. Sempre que ela chegava em casa ou se sentava no sofá para ler ou ver televisão, Marilyn e suas irmãs pareciam rir com um certo deboche de suas roupas, de seu cabelo. Olhavam-na com desprezo. Com um misto de vergonha e raiva, Júlia as fitava nervosamente, sentindo, por cima dos ombros, o riso penetrante das fotografias.
Júlia passava cada vez mais tempo em seu quarto e começara a entrar em casa pela porta da cozinha quando os quadros no corredor começaram a murmurar e segui-la com os olhares. No começo, era só uma impressão, um calafrio que desaparecia assim que ela virava para trás. O pânico cresceu gradativamente no peito de Júlia, ao ponto de ela não mais conseguir ir até a cozinha com a cabeça erguida e as mãos firmes. Evitava ter que passar por ali. Quase não comia e levava jarras de água para o quarto. Apenas quando a sede apertava, voltava para enchê-las. Respirava fundo antes de atravessar o corredor e corria, cada dia mais rápido, até perder o equilíbrio e desabar. De quatro, com as mãos sobre a água e os cacos de vidro, Júlia sentiu o peso dos olhares em suas costas. Ajeitando-se para sentar no chão, ela os encarou. Eles a julgavam, riam, humilhavam-na. Com as mãos sujas de sangue, Júlia cobriu os ouvidos, mas não conseguia abafar a gargalhada que explodia na parede. Júlia gritava, berrava. O rosto quente era aos poucos coberto pelas lágrimas.

A poeira grossa voou de cima da estante e dançou no ar, iluminada pelo sol que entrava pela janela. Não é nada grave, pensou o corretor de imóveis. Ninguém liga para a poeira. Um casal estava para chegar, para dar uma olhada no apartamento, e ele estava dando os retoques finais. No geral, o lugar estava em bom estado. A única coisa que o incomodava eram os quadros e as fotografias: jovens taitianas com os seios a mostra e senhores de chapéu; Marilyn Monroe, sorridente, em diversas cores; homens, mulheres e crianças, pendurados uns nos outros; duas moças na praia. Uma delas era aquela menina e a outra... Talvez uma amiga, uma irmã, ou namorada. Todos tinham os olhos riscados. Por que as famílias nunca os levavam embora? Com o suor escorrendo pelas costas, ele juntou as imagens e largou-as em um canto do guarda-roupa. Era melhor não brincar com essas coisas.

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