terça-feira, 12 de fevereiro de 2013

Algumas opiniões sobre Django, Tarantino e empoderamento

Este ano, consegui agitar um bolão do Oscar no trabalho. Adoro jogos relacionados a trivia e especulação e aceito qualquer oportunidade de participar até mesmo de bolão da Copa, embora não ligue muito para futebol. Infelizmente, a única vez em que resolvi não entrar na aposta foi também a única chance que tive de ganhar: o objetivo era acertar o resultado do jogo Brasil x Coreia do Norte, em 2010, e poucas pessoas chutaram que o placar seria tão apertado (2 a 1 para o Brasil). Mas é claro que foi pura coincidência. Dei um tiro no escuro e acabei acertado o alvo, mesmo não tendo entrado no campeonato. Já de cinema, sei um pouco mais do que de futebol. Ainda assim, para não mirar a esmo, estou correndo um pouco mais do que o normal para assistir a todos os indicados antes da cerimônia, que será realizada dia 24. Então, em uma sessão lotada, com espectadores perdidos que passeiam no meio das poltronas, assisti a Django Livre.

Cartaz muito melhor do que o dos cinemas.

Para quem morou em Marte pelos últimos meses, o filme usa a estética dos western spaghetti – os faroestes italianos dos anos 60 e 70 – para contar a história de um escravo liberto em busca de sua esposa. O próprio nome do personagem principal vem de um filme de 1966, dirigido por Sergio Corbucci, chamado apenas Django. É a já conhecida receita do cinema de Quentin Tarantino: uma xícara de chá de referências a gêneros, subgêneros e diretores, com cinco colheres de sopa de tiros e violências afins. Entretanto, Django faz parte de uma nova fornada de produções tarantinescas, agora com o ingrediente que faltava para despertar polêmicas que o simples derramamento de sangue não foi capaz de abalar.
O novo elemento não é o contexto histórico. Claro, Bastardos Inglórios também faz parte desta nova leva, mas não basta ter como cenário um momento dolorido do passado recente da humanidade. A nova missão de Tarantino vai além. O objetivo parece ser dar a grupos oprimidos uma chance de vingança contra seus opressores através das telas de cinema. Assim, Django enche de balas os beneficiários do regime escravista, enquanto os judeus do esquadrão comandado por Brad Pitt explodem Hitler e seus principais asseclas. Mas a brincadeira já vinha de antes: quando A Noiva finalmente consegue dar cabo de seu ex-companheiro, não é só de Bill que ela está se vingando, mas de toda uma sociedade opressora que a violentou, a condenou à morte por ter se envolvido com outro homem e tomou sua filha.


É questionável o direito de Tarantino de tomar a frente deste movimento de suplantação através da arte. Tarantino não divide as cicatrizes do passado e nem as dores do presente de quase nenhum grupo minoritário: é um homem cis, caucasiano, hétero, sem qualquer tipo de necessidade especial. A exceção fica por conta da ascendência cherokee de sua mãe, que também era de origem irlandesa. Ainda assim, Tarantino não é negro, nem judeu e nem mulher e embora possa entender de maneira abstrata o sofrimento destas pessoas, é possível argumentar que a falta da sensibilidade necessária para temas tão delicados leva a uma espécie de fetichização da crueldade. Afinal, ao mesmo tempo em que deliramos com cada tiro da arma de Django, com cada golpe da espada da Noiva e com cada rolo de propaganda nazista queimado por Shoshanna, também devemos aguardar com uma certa ansiedade a próxima tirada de Landa, o próximo ataque do Esquadrão das Víboras Assassinas e o próximo crime cometido por Candie, o temível mercador de escravos de Leonardo DiCaprio.
Claro, os vilões de Tarantino não são os únicos a apelar para os nossos mais cruéis sentimentos. Está aqui na minha mesa um chaveirinho do Darth Vader que não me deixa mentir. Porém, o pano de fundo é muito mais realista. Vader explodiu um planeta inexistente, Landa matou famílias inteiras durante o Holocausto. O problema é resolvido com ares de ridículo e absurdo, como o cachimbo que mais lembra um soprador de bolhas de sabão de Christoph Waltz. Assim, o público não se engana: a realidade não era lá tão simpática. E, no fim, a verdadeira catarse é quando os monstros de Tarantino – de Hitler a Bill – batem as botas.


É aqui que Django falha tremendamente. O terno bufante que Jamie Foxx usa durante uma determinada sequência e a deliciosa cena da Ku Klux Klan não são suficientes para esconder o horror da escravidão. As costas feridas de Django e os corpos e almas dilacerados daqueles homens e mulheres são reais demais, presentes demais. Como se Bastardos Inglórios tivesse como cenário um campo de concentração. É difícil se desligar do passado verdadeiro e aceitar a catarse que Tarantino oferece. Quando ela finalmente chega, é insuficiente. O principal motivo é o fato de Django não ser o responsável pela morte de Candie. O trabalho fica por conta de seu companheiro, o Dr. King Schultz, um alemão horrorizado com a barbárie cometida em sua nova pátria. A Django cabe a tarefa de matar alguns personagens sem nome e o também escravo Stephen (Samuel L. Jackson), braço direito de Candie, que humilha seus iguais por benefícios na casa grande. Seu maior inimigo, com nome, sobrenome e personalidade, Django não tem o direito de liquidar. Dos personagens que aprendemos a odiar ao longo do filme, é apenas um outro escravo que se vê vítima da vingança de Django. Como nas lutas de mandingo apresentadas por Tarantino (e que talvez não sejam reais), os negros brigam entre si e eles, que são brancos, que se entendam.
Também faz falta a adesão de outros escravos à jornada de Django. A esperança ao longo do filme é de que outros se revoltarão, como é o caso dos três homens libertados por Jamie Foxx nos minutos finais; de que acontecerá algo nos moldes de Hitler mandado pelos ares. Porém, Tarantino privilegia o mito do herói solitário (comum nos faroestes, spaghetti ou não) e o máximo que conseguimos é um sorriso compreensivo, logo seguido pela declaração de Django, parafraseando seu inimigo Candie, de que é "um entre dez mil".

3 comentários:

  1. Duas coisas sobre Tarantino.

    Essa nova leva de filmes que focam em um movimento de catarse parte de um pressuposto que justifica a violência, o abuso e até mesmo a tortura como uma forma válida de vingança. Não se discute nunca os limites éticos e humanos das ações dos protagonistas presentes nos filmes. O telespectador torce pelos Bastardos, aprovando toda a tortura e violência que reprovam nos nazistas; o que conta é o "olho por olho, dente por dente". E isso não é apenas uma questão de revanchismo histórico; o mesmo processo catártico ocorre em Deathproof [spoiler] quando o assassino psicopata, personagem central do filme, falha em matar um grupo de vítimas e essas, ao invés de ligar para a polícia, ir a um hospital, anotar a placa do carro do assassino, decidem da maneira mais natural do mundo perseguir o assassino e espancá-lo até a morte. O direito à vingança é sempre colocado em primeiro plano, e toda a violência se justifica por esse direito.

    Agora, sobre Django, o revanchismo proposto por Tarantino falha ao se mostrar o revanchismo de um herói solitário. Além disso, após minha namorada apontar o filme como um pouco racista, percebi ouros problemas com a fita.[spoiler] Não é a raça negra que se vinga, somente Django, e só faz isso ao aceitar que, na verdade, não é um negro qualquer, mas sim "um entre dez mil". É apenas quando renuncia sua igualdade aos outros negros, quando deixa de se considerar negro, que Django recebe o direito de uma parcial vingança ao explodir a "Casa Grande"... e isso depois de abandonar três negros em um local desolado, sem em nenhum momento considerar o destino dos três. O negro continua sendo uma raça inferior, e somente Django alcança uma posição ativa, justamente por recusar sua raça.

    Gosto muito de Tarantino, porém existem problemas éticos preocupantes em seus filmes.

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  2. Muito bom Elisa!

    Sobre a vingança e a catarse incompleta de Django, acho que é bastante significativa. A escravidão e o racismo estão presentes entre nós, a libertação foi feita por brancos e, nos estados unidos, só muito mais tarde o movimento negro foi capaz de unir os negros em uma luta por igualdade e liberdade.

    Sobre o comentário do Marco Vito, acho bem bobo criticar as implicações morais das violentas e revanchistas vinganças "olho por olho, dente por dente", o cinema não deve ser uma representação de valores morais, embora possa, deva, e inevitavelmente os coloque em destaque e discussão. Se você queria que Django fizesse as pazes com Candie, devia ter ligado na TV Canção Nova. A violência é uma realidade e, em Tarantino, é uma estética. Ele não a representa com aquele pseudo-realismo seco que tenta em tudo mostrar tudo como drama. Em Tarantino violência é cinema absurdo e comédia - crítica possivelmente muito mais poderosa num cinema super-saturado de realismo (e maneiro, independente de vontades críticas). Além do mais, histórias de vingança e revanche são mais antigas que a História e não deixarão de estar presentes na literatura, no cinema, ou seja lá o que for que surgir aí pela frente.

    Sobre o Django e os negros, é preciso ficar claro que ele renuncia mesmo a sua igualdade de negro, como escravo. Ele até convida, mas não é capaz de mobilizar os negros a lutarem por sua liberdade. Nem está disposto a dedicar sua vida a isso. Nem todo mundo é obrigado a ser herói e messias. Django recusa sua igualdade com os outros negros, porque ser negro significa ser escravo. Ele não muda sua cor de pele, nem quer mudar, mas se desloca da estrutura opressora. Diferente de Stephen que se beneficia da estrutura opressora sem se deslocar dela, participa dela.

    Na prática é assim que se combate as estruturas. É claro que uma revolução ajuda, mas na prática, no dia a dia, quem é que é capaz de subir nos palanques conclamar as populações à revolução? A história da humanidade é uma história de opressões e silêncios.

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  3. Acho aceitável a violência dos filmes de Tarantino. Como o Rodrigo disse, ela é realizada de uma forma cômica, exagerada e bem distante do real, quase como um desenho animado. Não é Desejo de Matar, por exemplo, que usa câmeras e cores realistas para pintar uma ideologia de limpeza social.

    Quanto à união dos negros, tanto no filme quanto na história, acho que o buraco é bem mais embaixo. É uma visão equivocada (e escrita, obviamente, por brancos) a de que os negros não se uniram para combater a escravidão. Claro que eles não tinham lugar no Congresso americano e nem na corte da princesa Isabel, mas não podemos esquecer os inúmeros quilombos e revoltas como, a dos Malês, que pipocaram por aqui e pelos Estados Unidos e que foram muito mais significativas do que a história oficial nos faz acreditar. Esta visão é só mais uma ferramenta ideológica de opressão que não corresponde à realidade.
    Agora, no filme, Django não convida ninguém a lutar pela sua liberdade. E realmente acho que não seria característico do personagem convidar. O problema não é esse. O problema é ignorar esse papel histórico dos negros e colocar o personagem como um herói solitário que naturaliza a subjugação com a frase "sou um entre dez mil", frase que faz parte do argumento de Candie a respeito da inferioridade e da submissão "natural" dos negros. Sei lá, jura que não dava pra colocar aquele pessoal da carroça correndo e dando umas porradas?

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