sábado, 31 de agosto de 2013

Perdão

Eu sempre achei que poderia perdoá-los.
A porta bateu com força, me deixando para trás, no escuro. Eu tremia, chorava, gritava, implorava, berrava e, enfim, me calava, em pânico. Ainda assim, achei que poderia perdoá-los.
Mãos que eu não sabia de onde surgiam puxavam-me, agarravam-me, apalpavam-me, empurravam-me, arrancavam-me as roupas, a calma e a segurança no ritmo das gargalhadas sem dono que me ensurdeciam – estridentes, invasivas, nojentas, enervantes, agressivas. E eu achei que poderia perdoá-los.
Era uma brincadeira, me disseram. Foi engraçado. Se você não fosse tão fácil de assustar, se não tivesse tantas esquisitices, se fosse mais que nem a gente, se levasse as coisas na esportiva... Eu concordei e achei que poderia perdoá-los.
Brincadeira de criança, eles repetiram, anos depois. Todos éramos idiotas. Éramos imaturos, inconsequentes. Mas você tem que admitir que foi engraçado. Lembra quando você começou a chorar? Lembra? Você saiu correndo e nós bloqueamos o seu caminho e te jogamos de um lado para o outro e você começou a gritar e nós cuspimos na sua cara e você se encolheu no canto e nós nos esfregamos em você e te obrigamos a beber do nosso mijo e limpamos o chão com seus cabelos. Lembra? Lembra? Lembra? É claro que era uma piada imbecil, mas – ai, ai... – os bons e velhos tempos da infância, quando podemos ser bobos assim sem medo de nada nem ninguém... Eu sorri, assenti e achei que poderia perdoá-los.
Nos dias e noites de cansaço e ausência, o corpo coberto da cabeça aos pés, engolindo, por vergonha, um grito de angústia, de desespero; nas viagens de ônibus em que todos os meus pequenos problemas transfiguravam-se em aberrações dantescas e inundavam meus olhos, meu rosto, minhas mãos; nos abraços e carinhos em que eu nunca pude sentir nada além da violência de um toque estranho; em cada nojo, em cada aversão, em cada ódio, em cada tensão, em cada medo, em toda e cada vez que eu tranquei a porta com o mais forte dos cadeados para resguardar o mundo do incômodo da minha presença e me proteger das vaias e dos tomates e das risadas e dos xingamentos. Em todos esses momentos, eu achei que poderia perdoá-los.
Mesmo quando tornei a vê-los, já adultos, com filhos, empregos e responsabilidades, achei que poderia perdoá-los.
Eles me chamaram para um jantar. Queriam relembrar o passado. Queriam dividir causos, piadinhas, travessuras, pequenos relatos de um tempo mais inocente. Buscando uma nostalgia da qual eu ainda supunha compartilhar, eu aceitei o convite. A cada nova historinha sobre mim, eu sorria, assentia e achava que poderia perdoá-los.
Foi só quando o risinho crescente e intervalado ecoou pela sala e minhas mãos meladas de sangue deixaram cair sobre o carpete acinzentado o último dos corpos deformados e repulsivos – criados à minha imagem e semelhança – que eu finalmente entendi: eu jamais poderia perdoá-los.

Nenhum comentário:

Postar um comentário